segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Sol, a “Castelhana”

 Paulo Mendes*

Soledad, a Sol, vivia numa casinha simples, depois da Esquina Maboni, num recanto entre a estrada real de Tupanciretã e a linha férrea. Era uma área pública usada por tropeiros para descanso de gado porque bastava um peão para manter a tropa presa. A cerca das terras dos Bañolas vinha até um pedaço, fazia uma gambeta para dentro, se abria entre bambuzais e só parava nos trilhos do trem. A beira da estrada estava erguido o rancho da “Castelhana”, como a chamavam. Não era uruguaia, como pensavam, mas havia nascido na Fronteira, tinha sotaque carregado. Ela também nunca se importou e, por fim, até incentivava para que assim a tratassem. 

Dizem que viera ainda guria para a Vila Rica, trazida por uns carreteiros que faziam o transporte dos dormentes para a construção de estradas de ferro a partir de Cacequi. Foram dias e dias levando solavancos da carreta, ouvindo o rangido dos eixos e o assobio monótono dos tropeiros acompanhando o tranco lerdo dos bois. Por isso, já na velhice, colocava uma cadeira de balanço em frente à casa, ficava a beber um mate lavado e a assobiar antigas canções. E gritava: “Olha o tranco, Jaguané. Vamo, vamo, Pitanga...”, recordando a longa travessia de antanho. 

Havia sido encontrada desmaiada, ainda criança, ao lado da linha, possivelmente atropelada por uma locomotiva. Os carreteiros a salvaram com ervas e a alimentaram com leite de égua. Não lembrava de nada do passado, mas cresceu uma moça forte e braba, quase selvagem, que apavorava algum maroto que tentasse tocá-la, porque gritava, esperneava, arranhava e mordia. Assim, foi afastando os homens, a fama cresceu e se manteve intacta por muitos anos. Porém um dia, uma febre terçã tomou conta de seu corpo juvenil e ela saiu costeando a restinga, nunca mais voltou para a casa da viúva que a criava e veio se instalar na tapera. Quando se deram conta, a casa estava recuperada. Teria começado assim: de uma hora para a outra amanheceu um cavalo encilhado debaixo dos cinamomos. A fama que a Castelhana estava “sesteando para fora” correu logo e, depois, com o decorrer dos meses, outras moças vieram morar no lugar. 

Recordo que a Castelhana ia pelo menos uma vez por semana no bolicho. Um dia me convidou para conhecer suas “gurias”. Curioso, fui, mas ao chegar empaquei, dei meia volta e retornei apavorado, com medo e vergonha. 

Um ano depois, já mais velho, meu pai disse que era hora de fazer uma visita à casa branca dos prazeres mundanos, cujos quartos ficavam sempre com luz acesa até o amanhecer. Fomos num sábado. Houve uma pequena conversa entre o velho e ela, depois fui empurrado para dentro de um quartinho com um pequeno catre. Quando saí, estava diferente. Ainda trêmulo, fiquei dias sentindo na boca o gosto do mate amargo da “sobrinha” mais querida da Castelhana, a Maruca. Nunca mais voltei à casa encantada, e anos depois, virou tapera de novo. 

Recentemente, de férias na Vila Rica, fiquei horas olhando para o sol se deitar para o lado da banda oriental. Foi quando parou um caminhão e o motorista perguntou: “O amigo sabe me dizer se aqui vivia um tal Antônio Carreteiro? Sou neto dele.” Respondi: “Seu Antônio morava mais à frente, no São João do Barro Preto. Aqui, era o paraíso de dona Sol, a Castelhana...” 

(No Correio do Povo Rural, outubro de 2021)

*Paulo Mendes é autor de “Campereadas, crônicas, contos e causos do Sul”.

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