quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A primeira morte de Machado de Assis

 A visita do Barão do Rio Branco

Um dia antes de falecer, Machado de Assis recebeu a visita do Barão do Rio Branco. O estado de saúde do escritor era crítico, mesmo assim, ao ouvir ser anunciada a presença de pessoa tão ilustre, ele se esforçou tremendamente para se sentar na cama a fim de melhor receber o companheiro de academia. Segundo Francisca de Basto Cordeiro, que também se encontrava presente, a cena gravou-se para sempre em sua memória. Com a face iluminada por um resto de vida, Joaquim Maria estendeu seus braços para receber um abraço fraternal, mas o barão esquivou-se, limitando-se apenas a lhe apertar levemente a mão. Em seguida, muito constrangido, Rio Branco disse algumas palavras breves: 

“− Então o que é isto, Machado? Está melhor, não é? Amanhã voltarei a vê-lo...” 

José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, nem esperou pela resposta e retirou-se o mais rápido que pôde, fingindo não ver a cadeira que trouxeram para ele se sentar ao lado do moribundo. Machado de Assis caíra na cama, mortalmente ferido, humilhado, tendo sua sensibilidade sido ofendida de maneira irreparável. O escritor virou-se para a parede e mais nada falou, pois sua alma morrera naquele instante. Para completar a humilhação, todos que se encontravam no quarto ainda puderam ouvir o barão lavando as mãos num tanque que havia ali ao lado, como se temesse pegar alguma doença contagiosa. Do corredor, alguém gritou solícito, procurando ser gentil: 

“− Uma toalha limpa para o Barão!” 

E o escritor morreria na madrugada seguinte, desiludido com a vida e com os homens. 

(Do Blog Memorial do Bruxo)

Obra do chileno Juan Harris (1867-1949).

O comunista que beijou Machado de Assis no leito da morte

Por Sérgio Augusto* 

Em 1964, a casa de nº 11 da rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, foi invadida e saqueada pela polícia. Ali morava um perigoso subversivo chamado Astrojildo Pereira Duarte Silva, de 74 anos e armado de livros até o teto. 

De quê o acusavam? De haver conspirado para derrubar o governo. Não o que acabara de derrubar João Goulart, mas o que nos governara cinco décadas antes, quando aquele pacato senhor tinha apenas 28 anos e fazia parte de um grupo anarquista, liderado pelo professor José Oiticica. 

A prisão de Astrojildo Pereira mobilizou jornalistas, escritores e artistas, todos preocupados com o seu coração, avariado, meses antes, por um enfarte. Já estávamos em 1965 quando outro enfarte, daquela vez fatal, desfalcou as hostes comunistas de seu mais respeitável crítico literário. Seu enterro, coroado com um discurso de Otto Maria Carpeaux, foi num cemitério de Niterói – a mesma cidade de onde, 56 anos antes, Astrojildo saíra do anonimato para a história da literatura. 

28 de setembro de 1908. Um jovem de quase 18 anos pega a barca da Cantareira rumo à Praça XV, do outro lado da baía de Guanabara. Nem seus pais sabiam que ele pretendia visitar Machado de Assis no leito de morte. Tenso, Astrojildo bateu à porta do casarão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e implorou para que o deixassem entrar e ver o mestre de perto. 

Em vigília na sala de estar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha e Rodrigo Otávio manifestaram-se contra a entrada do rapaz desconhecido. Acordado pelo burburinho, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto, ajoelhasse ao lado da cama e lhe beijasse a mão, partindo logo depois sem se identificar. O escritor morreria na madrugada seguinte.

“Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”, escreveu Euclides da Cunha, num célebre artigo intitulado “A última visita”, publicado no Jornal do Commercio, dois dias depois da morte do escritor. “Qualquer que seja o destino desta criança”, vaticinou, “ela nunca mais subirá tanto na vida”. 

(...) 

* Sérgio Augusto é um dos mais importantes jornalistas culturais na história da imprensa brasileira. O texto acima é parte de um artigo de sua autoria publicado no Estadão em 6 de outubro de 2001.

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