segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

“Destemor acima de tudo”

 Antônio Maria

Estava espanado na cama, morto de fome, sem um tostão no paletó que eu via sobre o espaldar na cadeira. Era o ano de 1941, quando este gordo cronista pesava menos cinquenta quilos e cinquenta remorsos. 

Morávamos no edifício Andraus e acreditávamos num sol de praia que nos dava a pigmentação necessária à dignidade de um moço de Copacabana. Passava do meio-dia, o banho de mar tinha sido muito agradável, mas dele só restava aquela fome sem remédio, sem ter onde matar, ali, nas redondezas do Posto 5. O jeito era fechar os olhos e pedir a Deus umas horas de sono para o santo esquecimento da nossa pobreza. Pensei em vender o canário-do-império, comprado na véspera pelo meu companheiro de apartamento. Ou seria mais fácil comê-lo frito? Enquanto rejeitava essas duas soluções, entrou de quarto adentro um cheiro de comida gostosa que, de tão ativo, devia ser um assado de novilha rondando a minha miséria. Levantei-me num pulo e abri a porta. 

Ao lado, no 29, o mensageiro da pensão acabava de deixar uma marmita de razoável gabarito, rescendendo carne feita no torresmo. Lembrei-me de coisas honestas e sagradas − minha mãe e a fita azul da Congregação Mariana −, mas lembrei-me muito mais de mim, um andarilho, um coitado, a quem a Comissão de Inquérito do céu jamais negaria perdão por crime de gula. Tirei a tampa da primeira panelinha e dei com três fatias de carne assada (dessas que são escuras e tomam todo o gosto do molho) ao lado de um purê sem importância e de uma folha de alface própria para canário. Não perdi mais tempo. Revi a solidão do corredor, meti a mão e ia tirando as três fatias quando a porta se abriu. 

Agachado, humilhadíssimo, vi primeiro os pés da moça; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Estávamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de razão e eu, apenas, com fome. O silêncio demorava, quando ela o quebrou: “Faça o favor de me dizer seu nome”. Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura caíssem sobre minha culpa: “Fernando Lobo*, minha senhora”. 

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“Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria”

Organização de Guilherme Tauil

* Amigo pernambucano que morava no mesmo apartamento com Antonio Maria.

Antônio Maria Araújo de Morais (Recife, 17 de março, de 1921 − Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1964) foi um cronista e compositor brasileiro. Muito além, foi o primeiro "multimídia" brasileiro, destacando-se também como locutor esportivo, jornalista, apresentador, produtor, diretor de rádio e televisão e, finalmente, boêmio. É considerado um dos reis do samba-canção, tendo também composto polcas, frevos, marchinhas de carnaval, valsas e sambas. Morto prematuramente aos 43 anos, foi uma das figuras mais marcantes das noites cariocas nas décadas de 1950 e 1960.

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