sexta-feira, 11 de março de 2022

A trajetória de um menino de rua

 O meu guri 

Chico Buarque

(o nascimento de um menino de rua) 

Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar.
Já foi nascendo com cara de fome,
E eu não tinha nem nome pra lhe dar.
Como fui levando, não sei lhe explicar,
Fui assim levando, ele a me levar.
E na sua meninice, ele um dia me disse
Que chegava lá.
Olha aí, Olha aí,
Olha aí, ai o meu guri, olha aí.
Olha aí, é o meu guri.
 

(os primeiros roubos e a ingenuidade da mãe) 

E ele chega.

Chega suado e veloz do batente,
E traz sempre um presente pra me encabular.
Tanta corrente de ouro, seu moço,
Que haja pescoço pra enfiar.
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro:
Chave, caderneta, terço e patuá.
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí.
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.
 

(os roubos de coisas mais valiosas) 

E ele chega.

Chega no morro com o carregamento:
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador.
Rezo até ele chegar cá no alto,
Essa onda de assaltos tá um horror.
Eu consolo ele, ele me consola.
Boto ele no colo pra ele me ninar.
De repente, acordo, olho pro lado,
E o danado já foi trabalhar, olha aí.
Olha aí, ai o meu guri, olha aí.
Olha aí, é o meu guri.
 

(a morte por execução) 

E ele chega.

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais.
Eu não entendo essa gente, seu moço,
Fazendo alvoroço demais.
O guri no mato, acho que tá rindo.
Acho que tá lindo de papo pro ar,
Desde o começo, eu não disse, seu moço,
Ele disse que chegava lá.
Olha aí, olha aí...
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.
 

******* 

A pequena narrativa, por que não dizer pequeno conto, se passa no morro carioca “Chega no morro com o carregamento”, em tempos atuais, a narrativa é cronológica “De repente acordo, olho pro lado”, onde descreve o dia-a-dia, o ardil, e, os progressos das personagens; Psicológica, basta nos depararmos quando a mãe evoca “E na sua meninice ele um dia me disse / Que chegava lá…” anunciando que num passado (superficialmente próximo), em meio à pobreza e a vida difícil, ele, o filho, jura que dias melhores virão, virão de uma forma ou de outra. 

Sendo assim, é fácil deduzirmos que tendo como maus exemplos: o tráfico, os assassinatos, corrupção, extorsão policial, prostituição, a ida e vinda do tal dinheiro fácil, o molde desse Guri tenha sido o que o autor vem a retratar na letra. Chico Buarque faz o raios-X não só das favelas cariocas, mas de todas as favelas, ou grandes acúmulos de pessoas carentes, miseráveis etc., do Brasil. 

A personagem principal um “delituoso”, menor, “Chega estampado, manchete, retrato” e como secundários a mãe, ainda jovem, “Quando, seu moço, nasceu meu rebento”, e o repórter a quem a genitora do “guri” narra sua pequena saga, do berço pobre a morte pela policia, a quem a mãe chama de seu moço “Desde o começo, eu não disse, seu moço?”. 

Em suma, a letra aponta de maneira poética, até mesmo delicada, fatos cotidianos dessa grande classe carente, a tempos abdicadas das coisas mais simples, como um emprego, saneamento básico, escolas, faculdades… Uns com tanto, outros com quase nada, outros com mais nada ainda. A geografia “civil” do Rio de Janeiro é o marco do contraste econômico brasileiro, creio ser o mais significativo, de um lado o morro, a favela, o tráfico; de outro o Cristo, que muitos do morro dizem estar de costas para eles, Copacabana, Ipanema, linha amarela divisa de bens, amarela divisa de saúde. 

(...) 

(Do Blog A Canção Contada) 

Observações: 

● A mãe, provavelmente uma mãe-solteira, menina ainda, na gravidez do seu primeiro rebento (filho). 

● A jovem mãe imagina, na sua ingenuidade, que o filho seja um trabalhador que traz coisas ganhas pelo suor do seu trabalho honesto. 

● A bolsa, com tudo dentro, foi roubada de uma mulher qualquer na rua. 

● Finalmente, apesar da venda nos olhos para esclarecer que se trata de um menor o morto, a mãe, por não saber ler, imagina que o filho fez algo importante para ter a sua foto estampada em um jornal sensacionalista. 

Mas a verdade é que... 

O que deveria estar em questão aqui não é a mãe do guri, mas o descaso social e político a que estão expostas as pessoas de baixa renda. A figura mãe iludida representa a própria sociedade que finge não ver um problema tão explícito e se exime de qualquer responsabilidade, por crianças que adentram ao mundo do crime, adolescentes viciados em drogas e jovens mortos em consequência de tudo isso. Não está em questão julgar a mãe, mas a própria sociedade omissa, iludida e que não se sente responsável por tantas vidas que são roubadas do nosso convívio. Não se julga no caso a Mãe do Guri, mas a cada um de nós que prefere desviar o assunto e culpar “as mães” a assumir sua própria culpa. 

Behh 

(em Análise de Letras)

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