quinta-feira, 31 de março de 2022

Delay de 40 anos

 Fabrício Carpinejar

Fabrício Carpinejar – capa da revista da Livraria Saraiva 

É engraçado revisar o passado. 

Todas as reprimendas e castigos dos pais na minha infância viraram meus objetivos de vida. 

“Fique trancado no quarto!” 

É o que hoje mais desejo – ficar lendo, ouvindo música, assistindo a séries. Jogo a chave fora. 

“Não converse de boca cheia.” 

Quando almoço ou janto, eu me delicio com o silêncio dos sabores. Meus olhos crescem com a paz. 

“Não esqueça o casaquinho!” 

Nenhuma brisa me pega desprevenido. Nenhum ar-condicionado de cinema pode me fazer de refém. Sempre estou com um casaquinho – deixo até um deles no carro para facilitar o uso. 

“Não fale com estranhos!” 

Já está difícil falar com os amigos. Com quem não conheço, mais ainda. Sou educado com todos, íntimo com poucos. 

“Não me interessa o que é que os seus amigos podem ou não podem fazer.” 

Era uma prevenção à inveja. Para não ficar controlando a minha alegria pelo desempenho alheio. Comemoro o sucesso dos outros não sofrendo mais pelo que não aconteceu comigo. Cada um tem a sua régua. O que é bom para mim pode ser ruim para um amigo, e vice-versa. 

“Avise quando chegar.” 

Minha esposa e meus filhos já sabem: mando uma mensagem quando embarco e outra quando estou de volta. Espalho pela família o GPS dos meus passos. 

“Em casa, falamos!” 

Não discuto mais na rua. Se eu tenho alguma dúvida ou aborrecimento, espero chegar em casa para tratar do assunto reservadamente. Sermão em público é constrangimento. O que costuma ocorrer é esfriar a cabeça durante o caminho e perceber que o sofrimento era ansiedade. 

“Não faz mais do que a sua obrigação!” 

Antes, eu fazia propaganda de qualquer tarefa doméstica, como se fosse um favor a quem morava comigo. Agora, cozinho, lavo roupa, estendo, passo, cuido da faxina sem depender de nenhum elogio. 

Não me interessa quem começou, eu disse para parar!” 

Sempre estamos procurando incriminar quem iniciou a discussão, e não prestamos atenção se a crítica tem fundamento. É uma disputa do orgulho de que não brinco mais. O que importa é ser maduro o suficiente para terminar o atrito. 

“Não fique tão perto da televisão, vai estragar os olhos.” 

Mantenho idêntica regra para o celular. Porque eu tenho consciência de que, se precisar de óculos, ficarei muito parecido com Woody Allen. 

“Pensa que dinheiro cresce em árvore?” 

Por precaução, trabalho também aos sábados e domingos. E podo as árvores quando necessário: economizo. No fim do mês, dedico pequena parte do salário a minha reserva florestal. 

Acho que meus pais eram profetas, ou falavam mais deles do que de mim naquela época. Talvez buscassem secretamente realizar tudo o que diziam para mim. Era um autoconvencimento que me usava como espelho. Hoje, com delay de 40 anos, tenho capacidade de perceber que os conselhos não representavam ameaças. 

Como aprendi isso? Um passarinho me contou. 

Ou, como eles mesmos me alertavam: só vai entender quando for pai. Eu me tornei pai de mim mesmo. Pássaro de mim mesmo. 

(Do jornal Zero Hora, março de 2022)

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