sexta-feira, 22 de abril de 2022

As vestes do O Laçador

“Antônio Caringi procurou-me em minha residência (na Rua Sarmento leite, 101, em Porto Alegre) para que posasse para o traço de seu lápis, o barro e o gesso de seus dedos. Como possuía uma espécie de museu, com trajes típicos, laços, boleadeiras, esporas, guaiacas, tirador, cuias, bombas e outros apetrechos, Caringi esteve várias vezes em minha casa. Tomava detalhes de mãos, braços, gestualidade e equilíbrio do tronco e pernas, peculiaridades e assentamento de cada peça ao corpo. Estas seções duravam de uma a duas horas, com as devidas paradas. Estava eu com 26 anos (1953). 

Assim, na grandiosidade da sua alma de artista, Caringi começava a criar e a modelar o seu ‘Laçador’, símbolo de um dos tipos mais característicos do homem rural gaúcho. 

Desta forma surgiram aspectos sobre peças do vestuário do futuro Laçador.

1) Tirador: espécie de avental de couro curtido e sovado que identifica sobremaneira a figura do Laçador e que protege a coxa do gaúcho na hora do correr o laço no momento da sujeição do animal. O artista o fez um pouco mais curto para usar melhor harmonia plástica na visão das pernas da figura humana na escultura. E o fez no tamanho perfeitamente dentro dos parâmetros campeiros. 

2) Laço: eu havia ganhado do velho campeiraço bajeense Severino Paes um laço que, pelo seu tamanho, era bastante raro: 14 braças e trança de quatro tentos. Assim usado em razão da dificuldade que o gaúcho de antanho tinha frequentemente para acercar-se de animais semisselvagens, muito ligeiros e perigosos, embora o campeiro procurasse montar cavalos ‘buenos de pata’ para laçar ‘campo a fora’. Ao manusear o laço demonstrativamente para Caringi formei uma armada maior, de acordo, abrindo-a adequadamente, de tal modo que essa, na parte inferior, ficasse apoiada no solo e a segurei, junto com as demais rodilhas harmonizadas em uma só mão, à direita, enchendo-a vigorosamente. Foi uma preocupação que tive para evitar eventuais discussões. 

O laço, com suas respectivas voltas não pequenas e apropriadamente enrodilhadas, não estava disposto de forma rígida, mas caía bem ao natural, pois era sovado a pealo. Arrematava as extremidades desta peça a característica ilhapa, junto da argola (grande) proporcional ao comprimento do laço de um lado e, na outra, a presilha. 

3) Guaiaca: espécie de cinta de couro largo, onde, por meio de repartições, guarda-se dinheiro e documentos, e que se destina a ajustar a bombacha à cintura. Esta usada pelo Laçador teve como inspiração um modelo antigo que eu possuía: de duas fivelas, com flores em relevo (tipo fabricado por Abramo Eberle de Caxias do Sul) e discretos medalhões metálicos ornamentais em sua extensão, aspectos estes a lembrar, através de tais formas cinzeladas, o bom gosto da ourivesaria sul-rio-grandense em peças da vestuária gaúcha. O mesmo cabe para a fivela do tirador. 

4) Bombacha: singela, sem exagero de panos, despida de plissados ou ornatos maiores (‘mondonguinhos’, ‘fofos’) e adequada às rudes lides do viver campestre. Enfim, uma bombacha como Mestre Caringi bem conhecia: não festivalesca. Foi dimensionada à sua sensibilidade plástica. 

5) Lenço: foi disposto por Antônio Caringi em uso distinto ao do hábito atual. Seguiu modelo dantes. Mostrei-lhe como, passado ao redor do pescoço, tinha suas extremidades bem nas pontas, disposição esta que, num entrevero de ‘ferro branco’, permite ao gaúcho desvencilhar-se do lenço quando eventualmente seguro pelo desafiante durante a peleia. Em razão de o lenço ser dobrado em retângulo deviam aparecer ‘as duas mosquinhas’ (dobras angulares) às costas. O escultor deu-lhe assentamento ao seu gosto estético. 

6) Camisa: simples, com gola e mangas dobradas e arregaçadas, adequadas à funcionalidade do laçar, botando a descobertos o vigor muscular dos braços e do peito seminu do campeiro, condizentes ao tipo de exercício árduo do seu trabalho quer nos parecer. 

7) Botas: preferiu esculpi-las em modelo rústico, a ‘meio-pé’ (aparecendo dedos e ‘meia planta’ do pé assentada no solo), lembrando a bota ‘de garrão de potro’ modelo artesanal primitivo que lhe mostrei em peça do meu acervo museológico. Este objeto está até hoje longe da vivência campesina. Na concepção simbólica do artista a bota-de-meio-pé dá uma integração mais íntima e telúrica do homem-terra e chão nativo. O Laçador não está descalço e nem de alpargatas ou chinelos. 

8) Vincha: fita estreita de pano, ou tento, disposta à cabeça, servia para prender ou sujeitar a abastada cabeleira que os gaúchos de outrora costumavam portar, cabelos estes, muitas vezes, aparados por afiadas facas. Pelos meus registros a vincha aparece com mais frequência na iconografia de ‘los gauchos cisplatinos’. Foi uma opção do escultor. Assim como o acréscimo de esporas ‘encabrestadas’ (tipo ‘chinela’ ou ‘papagaio’ virado para baixo) para dar mais assentamento plástico à figura maior, o motivo, junto ao pedestal de sustentação da estátua. A faca à cintura foi outra iniciativa sua”. 

Texto publicado em “O Laçador − Símbolo da Terra Gaúcha e sua Nova Morada”, de J.C. Paixão Côrtes.

P.S. O monumento permanece onde está, na entrada da cidade, próximo ao aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.


Antônio Caringi entrega a Paixão Côrtes uma réplica da estátua.

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