quarta-feira, 22 de junho de 2022

A educação dá* vida

 “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.” 

(Leon Tolstoi)

Por causa do seu feitio comprido e estreito, a Escola Aparecida levava o apelido de caixão de defuntos. Mas de morto o colégio não tinha nada. Professoras de alto nível e dedicação. Gurias e guris brincavam em pátios diferentes. Elas pulavam cordas, jogavam bilboquê, três marias, petecas e vôlei, enquanto eles, futebol, rasteira e cama-de-gato. Na época já havia quem se divertisse nos dois lados. 

De formação católica, no Aparecida se rezava antes do início das aulas, antes e depois do recreio e na saída. Se orava para não rodar e, alguns, até para não precisar rezar. Aquilo era só o terço. A missa de domingo era obrigatória − a não ser que o malandro não quisesse passar de ano. Para receber a hóstia, o cara tinha que confessar até as bergamotas que roubara do colégio. Uma vez a cada quinze dias era dia de capina − dia de cuidar da horta comunitária. E não é que aquilo dava frutos? Todos se enchiam de dignidades na hora da colheita: alface, couve, cenoura, entre outros, que a terra orgulhosamente retribuía àqueles que a semeavam. Podia-se até levar para casa parte dos produtos colhidos. Aí estava o barato. 

De tempos em tempos, o Aparecida recebia a visita do Padre Mascharello. O irmão doava santinhos, vendia escapulários, concedia conselhos, vendia crucifixos, pregava a fé, vendia... sempre em nome de Deus. Os alunos, por sua vez, orientados pelas competentes professoras Elza, Tita, Tereza, Maria Helena, Maria Cordeiro e outras, preparavam jograis, versos, danças e outras atividades lúdicas e culturais para as comemorações do dia das Mães, dia dos Pais, dia da Bandeira, dia do Dia e outros dias. Aquilo tudo era educativo. A gurizada se soltava. Mas a cobrança era grande, e a coisa funcionava. 

Voltando ao representante de Messias na terra, o religioso pegava pesado na sua cruzada pela escola. Com receio que algum discípulo se desgarrasse e deixasse a fé de lado ou exagerasse nos pecados, alertava, prevenia sempre contra o pecado − para ele, tudo era pecado, até roubar no jogo de bola de gude: contagem do mudes, último pra raia, ladeira, boco*, limpes... ah, quem jogou bolita sabe. 

O padre desenhava no quadro negro um facho lotado de fogo! Só o desenho já era o bastante para esquentar a sala toda. A gurizada tremia de medo só em ver aquele fogaréu. Do panelão ardente saíam labaredas que se transformavam em um diabo nervoso, louco para devorar o malcriado que teimasse, que respondesse para os pais ou que não fizesse os temas de casa. Depois de ver aquilo, com culpa e medo de prestar conta para o Zé Pilintra* lá nom inferno, o gajo ficava mais um mês sem tocar uma bronha*. 

Nas festas do Aparecida, um dos números mais esperados era a trova entre os filhos do Vanoli e do Cassepp. 

O primeiro verso era assim: 

Eu sou gaúcho dos bons

Sei muito bem o que faço

Não há cavalo que escape

Do pialo* do meu laço. 

Depois, um floreio de gaita, e: 

No pialo do teu laço

Só cairá boi doente

Porque não pode correr

Corre menos do que a gente. 

Aquilo se estendia entre palmas e risadas da gurizada. Os versos eram sempre os mesmos. 

******* 

(Texto do livro: “Ramiz Galvão − lambanças e lembranças”,

de Mario Pepo Santarém)

Glossário 

* dá: do verbo dar; 

* boco: o mesmo que imba, buraco feito no chão, e em que, no jogo de bola de gude, deve entrar a bola; 

* Zé Pilintra (ou Zé Pelintra): no Sul, o mesmo que demônio, diabo; 

* Bronha: masturbação, punheta; 

* Pialo: laço que se atira no boi pelas patas dianteiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário