domingo, 12 de junho de 2022

Inverno, fogo e a vida

 Paulo Mendes

Aqui me paro, sorumbático, nesta manhãzita fria de junho, sentindo os músculos cansados, uma dor nas juntas, com a coluna retorcida por tantos invernos. Vejo neste espelho enferrujado um rosto amigo, cheio de rugas que o tempo desenhou, os cabelos já branqueados pela geada dos anos. Porém, os olhos são duas nazarenas que brilham até no escuro. E enquanto essas esporas estiveram emitindo luz, o coração, mais abaixo, estará pulsando no compasso ponteado de uma milonga missioneira. “Não te afrouxa, meu filho”, escuto a voz mansa e clara de dona Mirica, que o vento traz e deixa esparramada no chão do pátio, junto às folhas amareladas da amoreira. Então, a alma aquece, tomo mais um mate, e um calor invade o corpo deste bolicheiro de campanha que hoje vive a contar causos que são seus e são de todos. E lá estão as chamas a bailar na saudade. 

Ah, quantos fogões campeiros toureei neste já meu longo andejar. Fogo de chão, fogão e lareira. Fogo taludo, foguinho mixe e até fogueira de São João. A pele arrepia apenas de lembrar. Quando, no inverno, como agora, esperava o pai, José Mendes, com o fogareiro a carvão aceso, as chamas subindo e dançando, fazendo murisquetas e atirando faíscas no piso de chão batido da humilde cozinha rural. Eu não tinha ideia de como fomos tão felizes nos remendos de nossa pobreza, o pai, a mãe, os dois filhos, unidos em prol de uma vida simples, cada um com suas responsabilidades. Formávamos um time pequeno e uno, todos davam aquilo que podiam e creio que vencemos as lutas que travamos. 

É impressionante como o tempo passa e vamos nos dando conta de que não precisamos de muitas coisas para viver bem. Basta um lar, uma casa, uma cama para dormir, um prato na mesa, uma roupa no corpo, um calçado nos pés, um carinho do pai e um beijo da mãe. Basta um caniço de taquara no ombro em um domingo de manhã, uma sanga, um anzol e um lambari. Basta um campinho, uma bola de couro rasgado, duas estacas e um sonho de guri. Uma água fresca recém-tirada do poço. Não é necessário mais que um fogo de aroeira e angico, um espeto de pau e um churrasquinho debaixo de uma ramada às margens do Guassupi. Basta ver a mãe fazendo uma salada de maionese, de avental sobre o vestido surrado, rindo com as irmãs, batendo gemas de ovo numa caneca alouçada e contando causos de assombração. Ou enxergar o pai chegando de uma tropeada, apeando do Tostado suado, assobiando “Tordilho Negro”, do Gildo de Freitas. 

Nada mais é preciso. Realmente, não carecemos de muito. Mas vem a vida, nos arrebata tudo e leva embora o que tínhamos de melhor. Por quê? Ficamos sem a bola, sem o caniço, sem o lambari, sem os domingos ensolarados, sem o fogo de chão, sem a graxa pingando no braseiro, sem o futebol no campinho das taquareiras, sem o tropeiro que chegava feliz, sem a maionese caseira feita pelas mãos amadas da bolicheira. Sem os sonhos e sem as alegrias. Sobra este gosto salobro na boca, resta o inverno com sua açoiteira comprida e gelada. Porém, não me entrego. Com o lápis, risco o ar, em círculos, como se estivesse remexendo num borralho imaginário. Assopro uma, duas vezes. As brasas renascem e vivo tudo outra vez. 

(Do Correio do Povo, junho de 2022) 

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