quinta-feira, 16 de junho de 2022

Uma fábula fabulosa

 Mário Corso*

A história é conhecida. Porém, pela lição que nos traz, convém relembrá-la para os mais jovens. Especialmente nestes dias que o frio nos castiga. 

Durante o verão, enquanto o calor ameniza as agruras da vida, as formigas forrageiam. Sábias, preparavam-se para o longo inverno que não tardaria a chegar. Sem provisões estocadas, a morte por fome e frio era uma certeza. 

Enquanto isso, aproveitando o momento, a cigarra cantava sem parar. Seu canto preenchia a paisagem. Era a manifestação sonora da felicidade da natureza em seu esplendor. 

As formigas, a boca pequena, comentavam entre si o desperdício de energia com tal cantoria. Sem se distrair, seguiam com sua faina incansável, enchendo a toca de tenras folhas. 

Como a natureza é um ciclo, chegou o outono. A paisagem foi amarelando e caindo. Os ventos traziam ares gelados. O sol comparecia cada dia menos. Mais uns dias, a neve cobriu os campos e o sol mal dava as caras. Era o inverno inundando a natureza com seu inferno branco. 

O inverno só conhece o ruído do vento. A paisagem ficou deserta. O hálito glacial da estação espantou a todos. Os animais estavam trancados em suas tocas. Os ursos dormindo nas cavernas, os esquilos nos ocos das árvores e as formigas descansando no subsolo. 

Em um dia, ainda mais inóspito que os demais, as formigas ouvem uma batida na porta e depois uma frase. 

− É a sua amiga cigarra. Disse ela em voz alta, competindo com o uivo do vento. 

As formigas alvoroçaram-se. Resmungavam entre elas: não vamos dar nada para esta ordinária; dia após dia, nos esfalfamos trabalhando e essa vagabunda cantando ao léu. As formigas não conseguiam esconder o prazer de negar um favor para pregar sua lição de moral. 

Uma delas, sem abrir a porta, perguntou: 

− O que você quer? 

− Queridas, queria me despedir de vocês. Gritou a cigarra. 

As formigas entreolharam-se. Concluíram: ela sabe que vai morrer e veio dizer umas palavras. Não é tão leviana assim, ao contrário, é uma consideração para conosco. Então abriram a porta. 

A cigarra entrou. Estava bem vestida, corada e feliz. As formigas não estavam entendendo. Então ela explicou: 

− Estou indo para Paris. Sabe, conheci um produtor que me viu cantar. Gostou e quer me produzir no exterior. Estamos indo para uma turnê na França. Não podia ir sem dar um beijo em vocês. 

As formigas ficaram pasmadas, não sabiam o que dizer. A mais velha de todas tomou a palavra: 

− Eu ouvi bem, você vai para França? 

− Sim. Respondeu a cigarra. 

− Poderias me fazer um favor? Disse a formiga mais velha. 

− Claro! 

− Se por acaso você encontrar um senhor chamado La Fontaine, manda ele para o diabo que o carregue! 

Moral da história: 

Nunca subestime o poder da arte. Ela não enche barriga, mas só seu canto esquenta o frio da alma. 

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* No jornal Zero Hora, junho de 2022

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