sexta-feira, 10 de março de 2023

Os parceiros do Samba

 Ismael Silva e Noel Rosa

(Ilustração Luquefar) 

Por força das circunstâncias de um defeito físico, ocasionado no ato do seu nascimento, o menino Noel Rosa em sua infância sentiu-se traumatizado e fez com que descobrisse uma maneira de comunicar todo o seu sentimento recalcado. Não desejava o austero, mas, sim, o canto do dia a dia, límpido como água cristalina, para saciar a sede do espírito ao cantarolar ou assobiar um samba como fonte amenizadora. Em suas confissões, Noel não aspirava ao “fastígio dos soberanos absolutos, não pensava em ser general, nem presidente da República”, contentando-se apenas, simplesmente, humildemente (tal como o foi toda a sua existência) em ser o encanto comunicativo dos criadores do ritmo, o samba em toda a sua plenitude e exuberância. 

Confidenciava: “Queria mesmo a música popular, ou seja, a generosa música acessível a todos, que a todos embriaga, que vai de alma em alma, comunicando uma mesma e religiosa emoção. Captou todo o espírito de uma época em suas raízes autênticas com o sentimento de coisas nossas, nossas coisas, sem ser inoportuno ou exagerado no canto de brasilidade.  Sabia dosar com intensa vibração as letras de seus sambas, sintetizando o espírito filosófico de quadros marcantes do cotidiano e expressando em flashes autênticos as manifestações urbanas cariocas, de tal densidade que se tornou a alma, o gênio da música popular”. 

(...) 

Noel Rosa nasceu no tempo exato e viveu no período ideal para extravasar todas as manifestações natas. Viu o grande Sinhô reinar com seus sambas, expandindo através da música a conturbada década de 20, com as transformações em todas as latitudes. A Semana de Arte Moderna, trazendo renovações estéticas, plasmando nova mentalidade em todos os setores artísticos, tornou Noel Rosa o predestinado a substituir o Sinhô e deter a coroa do reinado do samba. 

(...) 

Das reminiscências, Ismael Silva guarda um episódio do famoso Café Nice, lá na avenida Rio Branco, ofertando a dimensão da bondade de Noel Rosa, ao receber um rapaz negro, tateante diante da alma do samba, ao fazer a seguinte declaração: 

“Seu Noel − tartamudeou o rapaz − eu fiz um sambinha e queria uma estrofe sua para a segunda parte”. Alguém na mesa ao lado quis dar uma risada, mas Noel se antecipou à zombaria: “É uma honra, companheiro,”. Tirou papel do bolso, pediu lápis ao garçom e mandou o rapaz cantar. E fez de estalo quase sem pensar, quatro lindas estrofes. Maravilhado, o rapaz agradeceu, mas observou: “Seu Noel, o senhor acaba de me complicar a vida. Pedi-lhe um verso e tenho quatro. Jamais conseguirei decidir qual deles é o mais bonito”.  

E Noel, com sua bondade: “Então, faça mais três sambinhas bonitinhos, companheiro”. 

(...) 

Com o falecimento de Newton Bastos, em 1932, Ismael logo encontra a personalidade do samba, aderindo e formando a dupla inesquecível: Ismael Silva-Noel Rosa, resultando dessa união a produção de oito músicas. Compondo sem instrumentos, à espera do estalo, em qualquer lugar, com imaginação fértil, Ismael narra o episódio do Café Nice, quando mostrou a primeira parte de uma música a Noel Rosa, com estes versos. 

Estou vivendo com você

num martírio sem igual.

Vou largar você de mão,

com razão,

para me livrar do mal. 

E na batida do ritmo, Noel Rosa, com sua argúcia, genialidade, bossa e até categoria, completou a composição com a segunda parte: 

Supliquei humildemente

pra você se endireitar,

mas agora, infelizmente,

nosso amor tem que acabar.

Vou me embora afinal.

Você vai saber por quê.

É pra me livrar do mal

que eu fujo de você...

P.S. Na gravação de Ismael Silva, ele acrescenta uns novos versos ao samba. 

(Textos do livro: “Sua excelência o samba”,

de Henrique L. Alves)

Um repórter da revista Carioca, à esquerda, e Noel Rosa, à direita. Talvez uma das últimas fotos do compositor: Revista Carioca, 01 de maio de 1937 (Noel Rosa faleceria no dia 04 de maio de 1937, com quase 26 anos). Arquivo Nirez

Nenhum comentário:

Postar um comentário