sábado, 18 de maio de 2024

A dívida paga

Quando eu tinha 14 anos, pedi uma bola de futebol para minha mãe e ela disse: 

‒ Não, Marcelinho, não temos dinheiro para isso. 

Então, fui à loja e disse ao senhor: 

Senhor, pode me vender uma bola de futebol? Eu pago quando for jogador de futebol profissional. 

Ele começou a rir e disse: 

Claro que sim, Marcelo, lembre-se apenas de pagar... 

Assim foi. 

Quando tive oportunidade, voltei e comprei todas as bolas para dar as crianças pobres do meu bairro.

 

Marcelo* 

* Foto do jogador quando jogava no Real Madrid, da Espanha. Atualmente joga no Fluminense, do Rio de Janeiro. 

(Do blog Tudo Pelo Futebol)

O Homem da Injeção II

 Música: Rubel ‒ Letra: Breno Góes

Foto do jornal O Globo 

Tirou a roupa no meio da praça.
Subiu na estátua de um marechal,
Em pleno meio dia o bronze faiscava,
A bunda sentia o calor do metal.
E cada transeunte que se aglomerava,
Fazia piada: “nem é carnaval”.
E como toda nudez será castigada,
Apareceu do nada um policial.
 

Nosso herói não se importava
Com as partes à vista da população.
Não era pro seu pincel que apontava,
Mas pro antebraço chamava a atenção.
O que ele gritava você já imagina:
“Vacina! Vacina! Vacina!” e, então,
O policial declarou que o tal
Estava pelado e coberto de razão.
 

O povo vendo que até o guarda
Tirando a farda, apoiava o civil,
Foi saindo do sono perigoso e inerte
Como disse Laerte, a grande ficha caiu.
Feito uma peça de Zé Celso no teatro oficina,
Pedindo vacina, a ralé se despiu,
E disse: “até que o pulha nos traga a agulha
Será a vez da nudez no Brasil!”
 

A história chegou ao palácio,
Até o pancrácio que rege o país,
Que achou engraçado ver tanto pelado,
Mas quis acabar com esse diz que me diz.
Tentou discursar na TV pra nação,
Falando talqueis e taisquais sem sentido,
E um menino, rindo da televisão, disse:
”Olha mamãe, o rei está vestido!”
 

PS: A música é inspirada na história real de um homem que ficou nu em uma praça pública do Rio de Janeiro e subiu em uma estátua exigindo vacina. É uma cena absurda e surreal, assim como o momento político (era no governo Bolsonaro) que vivíamos. A música está na internet

Rio Grande

 

Equilibrando-se na cumeeira

de um telhado

um homem esmurra

as telhas afogadas

pela enchente.

Arrebenta.

Do ventre dos escombros

nasce uma cão. 

Dani Langer

 (No jornal Zero Hora, 18 de maio de 2024)


Trolagem entre amigos

 

Dois amigos, velhos sacanas, jogam conversa fora, em pé, numa mesa de botequim. Depois de alguns drinques, um deles, já sem assunto, dá o seguinte aviso ao colega? 

‒ Agora me lembrei. Quem te mandou um abraço foi o Alberto! 

‒ Que Alberto? 

‒ Aquele que te comeu atrás do armário! 

‒ Erraste, cara, quem entra na história é o Mário! 

‒ Ah! Então foi o Mário... 

 

Passam-se alguns minutos, e o amigo, que estava no prejuízo na trolagem, resolve dar o troco. 

‒ Me contaram que você resolveu depilar os pelos íntimos. É verdade? 

‒ Sim, para ficar mais bonito nas intimidades, depilei na frente e, atrás, até o fiofó. 

‒ Cuidado! O meu avô já dizia: “Quem limpa a calçada, quer visita!”. 


sexta-feira, 17 de maio de 2024

Impressão

 

Anos 2000 a.C. 

Na antiga Mesopotâmia, carimbos cilíndricos de pedra eram utilizados para autenticar documentos gravados em placas de argila. 

Anos 900 d.C. 

Na China, durante a dinastia Song, a impressão com blocos de madeira era usada para produzir livros. 

1450 

O alemão Johannes Gutenberg constrói a primeira prensa tipográfica europeia (gravura acima) com tipos móveis de metal. 

1790 

O londrino William Nicholson recebe a patente da prensa rotativa, um sistema de alta velocidade ainda usado para imprimir jornais e revistas. 

1796 

O escritor alemão Alois Senefelder inventa a litografia, em que se aplica tinta a uma pedra plana para reproduzir imagens. 

1880 

Pela primeira vez, uma fotografia em meio-tom é impressa num jornal americano. Mostra uma favela em Nova York. 

Década de 1950 

O inventor japonês Ichiro Endo, que trabalhava na Canon, apresenta o conceito da ‘bubble jet”. É a base das impressoras a jato de tinta. 

1969 

O americano Gary Starkweather, que trabalhava na Xerox, utiliza laser para “desenhar” uma imagem no tambor de uma copiadora e inventa a impressão a laser. 

1971 

O americano Johannes Gottwald patenteia um “gravador de metal líquido” para produzir protótipos. Hoje, a impressão 3D já está consolidada. 

(Texto da “Seleções do Reader′s Diget”, janeiro de 2022)


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Duas histórias para sorrir

 O enólogo inconveniente

Em um armazém de vinho, o provador faleceu e o diretor começou a procurar alguém para fazer o trabalho. 

Um homem bêbado, sujo, apareceu para se candidatar. 

O diretor estava se perguntando como poderia se livrar dele. 

Deram-lhe uma taça de vinho para provar. 

O velho provou e disse: 

‒ É um moscatel de três anos, feito com uvas colhidas na parte norte da região, amadurecido em um barril de aço. É de baixa qualidade, mas aceitável. 

‒ Certo, disse o chefe. Outra bebida, por favor. 

‒ É um Cabernet de oito anos colhido nas montanhas ao sul da região, amadurecido em barril de carvalho americano a oito graus de temperatura. Falta-lhe ainda mais três anos para alcançar a sua mais alta qualidade. 

‒ Absolutamente certo. Uma terceira taça. 

‒ É um espumante elaborado com uvas pinot blanc de alta qualidade e exclusivas, disse calmamente o bêbado. 

O diretor não acreditou, piscou à secretária para sugerir algo. Ela saiu do quarto e voltou com um copo de urina. 

O alcoólatra provou isso. 

‒ Ela é uma loira de 26 anos, está bem de saúde, grávida de três meses, se não conseguir o cargo, eu digo quem é o pai! 

‒ Saúde!!!

*******

Não existe mulher feia

Fomos a uma festa e um amigo do meu marido chegou com a nova namorada dele... mulher bonita, cabelo escovado, unhas de gel, perfume importado, maquiagem impecável... 

Realmente, tenho que admitir que aquela garota conseguiu fazer ciúmes nas outras mulheres que estavam na festa. 

Bem, eu saí para pegar uma bebida e quando voltei, ouvi meu marido falando com outro amigo: 

‒ Uau! Mas que primor de mulher! Ô cara que tem sorte! Isso sim que é uma mulher de verdade! 

Fiquei superirritada, mas não ia estragar a festa, mesmo sendo impulsiva, calei-me e pensei “um dia dou-lhe o troco”. 

Não demorou muito, fomos convidados para outro evento e como a vingança é um prato que se come frio, logo pensei: é hoje! 

Marquei horário para fazer pés e mãos, fiz aquela escova no cabelo, limpeza de pele, drenagem linfática, massagem relaxante, passei na loja e comprei um vestido caro de marca, um sapato novo porque não podia faltar, maquiei-me com a melhor profissional da cidade... 

Quando meu marido chegou e me viu mal acreditou. 

A noite foi maravilhosa, dançamos, bebemos e nos divertimos. 

De volta para casa, eu disse que ainda tinha uma surpresa para ele. 

O homem enlouqueceu, as crianças não estavam em casa, então logo o menino ficou todo animado... 

Finalmente, em casa, depois do festerê, devolvi o cartão de crédito dele junto com as contas de pagamento de todas as vantagens que me permiti nesse dia. Ele quase teve um ataque cardíaco, nada mais nada menos que uns 10 mil para pagar. 

O homem ficou louco e perguntando porque eu fiz isso... como ele ia fazer pra pagar e eu, linda e plena, respondi: 

‒ Bah! Tá pensando que ter “um primor de mulher” é barato? 

Moral da história: 

Não existe mulher feia, existe marido pobre.

 

Quando a água subiu

 Ana Helena Lopes

O entrevistador, microfone na mão, encontrou-se com ela. As roupas de doação aquecendo o corpo. O colchão arrumadinho, até uma pelúcia fazendo companhia para a menina. 

‒ O que eu estava fazendo? Eu tinha acabado de dar banho na menina. Estava pegando os ingredientes pra fazer um bolo. A menina tem medo da chuva, Cazé também. Então, quando chove forte, eu faço bolo pra ela e cafuné nele. Pra acalmar o coração deles, num é? 

Não, Cazé não é o pai da menina, não. Esse sumiu por aí. Cazé é meu cachorro. Nos encontramos na rua perto do serviço. Ele tremelicando de frio, eu, de solidão. Isso já faz mais tempo que a menina. 

Então eu estava lendo o livro de receitas da minha avó quando a água subiu. Foi rápido... como foi! Eu subi na cadeira com a menina num braço, o Cazé no outro. 

Agora eu vou chorar, o senhor me perdoe. É que o Cazé é grande... Em pouco tempo, a cadeira já estava nadando ao nosso lado. Eu segurei tão forte, mas uma hora meu braço se soltou do Cazé. Ele foi sendo levado pra longe com o olho arregalado. Eu, agarrada na menina, berrando o nome dele. 

Eu falo dele no presente, o senhor sabe... ainda tenho um fio de esperança que um barquinho vá chegar com ele dentro. 

Tem noite, aqui no abrigo, que eu acordo com febre, chamando pelo Cazé. A menina nem se assusta mais, ela faz carinho no meu rosto e diz: “Mamãe, o Cazé foi com Deus, lembra?”. Ela jura que viu Deus tirando o Cazé da água e levando ele pro céu. 

Aí eu ponho ela dentro do meu abraço e choro até secar. Mas, olha, vou ser sincera com o senhor, se eu pudesse botava ela de novo dentro de mim. Porque quando chega a madrugada, a gente sente medo de tudo. Eu quase nem prego o olho. Ontem mesmo vi um homem rondando a infância da minha menina. E ele dorme no colchão aqui ao lado... 

Nos primeiros dias, eu chorava tão alto... Agora eu choro pra dentro. E meu o coração quase morre afogado. 

******* 

Conto em homenagem a tantas mães, a tantas meninas e a tantos Cazés que viram a água levando seus sonhos durante as enchentes no Rio Grande do Sul, em maio de dois mil e vinte e quatro.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

A dor de perder a casa

 Mário Corso

Dada a magnitude da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul, proporcionalmente as perdas humanas têm sido minimizadas. A gigantesca mobilização de voluntários, as providências governamentais, o Exército lutando pela vida e o trabalho da Defesa Civil, vêm salvando milhares de pessoas.  

Quantas às perdas materiais da enchente, não abemos nem como calcular. Mas existem também as perdas imateriais, que não podem ser contabilizadas. Quando alguém perde sua casa, perde junto seu ninho. 

Um lar possuí uma dimensão tanto física como psíquica. Por isso, os idosos opõem-se tanto a abandonar suas casas. Na fragilidade da velhice, abandonar a casa é como tirar a tartaruga do casco. A casa é o único lugar onde se sentem seguros. Eles sabem-se débeis para enfrentar o mundo. 

Simbolicamente, nos sonhos, casa e corpo se equivalem. A dor de “perder tudo”, que é a frase que frequentemente brota dos lábios dos atingidos, equivale a dizer que se perderam dos contornos do próprio corpo. 

E ainda há o medo: os evacuados sentem-se frágeis, à mercê do pior. Não há como condenar esse pessimismo alarmista, ele é baseado na realidade. Existe a enchente e existe a canalhice dos saqueadores e oportunistas. Por isso, as mentiras que circulam na internet, aumentando o que já é ruim, são perniciosas, pois agravam a fragilidade dos desabrigados. 

Não há tanta diferença entre as perdas materiais e imateriais, são dores da mesma espécie. Porém de diferente magnitude. Casas podem ser recuperadas, vidas e objetos impregnados de memória não. A casa é também uma espécie de museu dos seus habitantes. Objetos de decoração lembram memórias de parentes, festas, viagens, visitas e amigos. Roupas são incrustadas de significado, aquela que foi usada para uma solenidade, a que o abrigava quando encontrou o seu amor, a roupa que dá sorte quando usa na balada. Sem falar no casaquinho de tricô que a vó fez para sair da maternidade. 

E nem entramos nas fotos e livros que a lama vai destruir, ou na bomba de chimarrão que herdou do avô, ou ainda na faca de churrasco que era do pai. Imaginem um menino que ficou sem seus brinquedos, uma menina que não pôde se despedir de suas bonecas. 

Perder tudo é perder os objetos que testemunharam uma vida. É perder a memória do esforço que foi necessário para adquirir cada um de seus bens. Cada casco, no fim das contas, faz parte do corpo da tartaruga. 

(Do jornal Zero Hora, 15 de maio de 2024)

Papo de professores de português

 

E os professores de língua portuguesa, uns observando, outros espiando pela janela da sala de professores. Em pequenos grupos e isoladamente. Perplexos alguns. Outros tecendo considerandos: 

Professor 01 ‒ A culpa é da Linguística. A Linguística subverte a ordem. Prega a anarquia. É um modismo. Não se corrige mais ninguém. É contra a gramática. O resultado está aí... 

Professor 02 ‒ Não querem que a gente ensine gramática. A gente vai ensinar o quê? 

Professor 03 ‒ Também... com um salário desses! Trabalho de acordo com o que me pagam. O resultado está aí... 

Professor 04 ‒ No meu tempo... 

Professor 05 ‒ Eu ensino, ensino, ensino e eles não aprendem. Que culpa eu tenho? 

Professor 06 ‒ Eles vêm da 5ͣ  série fracos... 

Professor 07 ‒ Eles vêm da 6ͣ  série fracos...

Professor 08 ‒ E como vai ficar essa gente toda na hora de um vestibular, na hora de um concurso público? 

Professor 09 ‒ Eu também não gosto do que eu ensino. Eu preferiria dar aos alunos só textos. Mas aqui na escola tem que cumprir o programa. 

Professor 10 (Com uma ponta de ironia, dizendo, como se dizia antigamente com seus botões):         

                      ‒ É sempre o eterno repetitório...  

(Do livro “Educação para crescer”)

Realidade fantástica

 Nílson Souza 

Perdoem-me a literatura numa hora dessas, mas é nos livros que busco refúgio para o cérebro e o coração quando fica difícil suportar a realidade, como vem ocorrendo nestes dias tormentosos no nosso pampa alagado. Em Macondo ‒ quem leu Cem Anos de Solidão, do extraordinário Garcia Márquez, sabe do que estou falando ‒, choveu durante quatro anos, 11 meses e dois dias. E, no entanto, os Aurelianos e José Arcádios sobreviveram para protagonizar uma história encantadora de muitas gerações. 

‒ Mas era realismo fantástico! ‒ poderão argumentar alguns leitores mais pessimistas do que este escriba. 

É verdade. Porém, a ficção existe justamente para nos proporcionar oportunidades de viver outras vidas além da nossa. Como diz outro grande das letras latino-americanas, o peruano Vargas Llosa, a literatura nos permite “saborear outras aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração”. 

Pois bem, depois de destruir casas, arrasar plantações, encharcar almas e levar vidas ‒ exatamente como está fazendo no nosso Rio Grande amado ‒, a chuva parou na vila imaginária do escritor colombiano. Ele relata: “Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo...”. 

E aí, sabem o que aconteceu? Os sobreviventes da catástrofe sentaram-se no meio da rua para se aquecer e conversar. Então um passante curioso perguntou-lhes o que tinham feito para não se afogar na tormenta que levara tudo por diante. Deram-lhe uma resposta coletiva: 

‒ Nadamos! 

Nadar, no caso, não significa apenas se deslocar na água com as mãos em forma de concha, em movimento coordenado de braços, pernas e respiração. Nadar é, acima de tudo, resistir. Resistir à gravidade, à correnteza, à lama, às perdas, às adversidades e ao desânimo. 

A gauchada está resistindo bravamente e isso nos dá certeza de que vamos sobreviver. E quando o sol voltar a brilhar sobre nossos telhados e nossas cabeças, também nos sentaremos no meio deste pampa precioso e malcuidado para alinhar os detalhes das histórias que haveremos de contar para os nossos netos, e que eles repetirão para os seus próprios descendentes por sucessivas gerações: 

‒ Meu avô contava que no dilúvio de 2024 um cavalo ficou ilhado durante quatro dias, de pé sobre um telhado de zinco, sem comer nem dormir, e saiu da enrascada de barco... 

E não faltará um menino mais cético para questionar: 

‒ Realismo fantástico outra vez, vovô?


(Do jornal Zero Hora, 14 de maio de 2024)

terça-feira, 14 de maio de 2024

Uma reflexão

  Sobre as casas gaúchas:

Tatiana Marmon* 

Quando me mudei para o Rio Grande do Sul, comecei a gravar as cidades daqui para apresentar em meu canal. Até o momento, foram mais de 40 cidades entre Serra Gaúcha, Vale do Paranhana, Vale do Taquari, Rota Romântica,  capital e outras. 

Visitar essas cidades foi importante porque me permitiu conhecer mais sobre a cultura gaúcha e os hábitos de seus moradores. 

Um fato que me chamou muito a atenção foi as cidades estarem sempre com pouco movimento nas ruas, mesmo no verão e nos dias quentes. 

Tal estranhamento se deve ao fato de eu vir de uma região do país muito quente, com hábitos bastante distintos. 

Quando esquenta “lá em cima” do país, temos o costume de sair de casa e ficar na rua conversando na praça, na calçada ou na mesa de bar com os amigos. 

Aqui no Rio Grande do Sul, mesmo nos dias quentes, eles se mantêm em suas casas. Reúnem os amigos e a família para um churrasco. A vida do gaúcho se constrói dentro de casa. 

Nos dias frios (boa parte do ano é composto por eles), se recolhem em seus lares, considerados verdadeiros templos para os gaúchos. O frio fez o gaúcho valorizar a sua casa como nenhuma outra região. 

Tal valor é notado não só pelo hábito do recolhimento, mas no cuidado com suas casas e jardins, sempre tão verdes e floridos. 

Ao circular pelas ruas residenciais, era de praxe eu exclamar com o Matheus: 

‒ Amor, olha que casa mais linda! Que casa boa! ‒ E eu não me referia a mansões, muitas vezes eram simples construções em madeira, mas sempre tinha um charme aqui e outro ali. 

Um tempo é sagrado e a casa gaúcha, também. 

Agora pense na dor dessas pessoas em perder os seus lares, seus templos? 

Por mais que a gente tente,  jamais conseguiremos mensurar a dor de um gaúcho em perder a sua casa... 

E jamais conseguiremos mensurar a dor de um gaúcho em ver outros gaúchos perdendo a vida. 

 *******

* Trabalhou como Professora do Curso de Turismo na empresa UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora.  Mora em Gramado, Rio Grande do Sul.

O encontro de almas gêmeas

 

Um idoso de 83 anos se aposentou e foi morar em uma cidade do interior após o falecimento da esposa de 78 anos. Estava muito sozinho no mundo e queria ter companhia novamente. 

Um dia, enquanto passeava pela praça, viu o que ele considerava uma senhora muito bonita, de cabelo branco, sentada sozinha num banco. Armou-se de coragem, aproximou-se da senhora e perguntou-lhe gentilmente. 

‒ Desculpe, senhora, mas posso sentar-me aqui consigo? 

Ela levantou os olhos para ver um distinto idoso de cabelo branco e respondeu. 

‒ Claro que sim! ‒ e aproximou-se suavemente para lhe dar espaço para se sentar. 

Nas duas horas seguintes, os dois sentaram-se e conversaram sobre tudo. 

Descobriram que vieram da mesma parte do país, que gostavam das mesmas músicas românticas, que votaram nos mesmos candidatos presidenciais, que tinham tido casamentos longos e felizes, que tinham perdido os cônjuges no ano anterior e que, em geral, estavam de acordo em quase tudo. 

Finalmente, o idoso clareou a garganta e perguntou timidamente: 

‒ Senhora, posso fazer-lhe duas perguntas? 

Com grande interesse e expectativa, a idosa respondeu: 

‒ Claro que pode! 

O idoso tirou um lenço do bolso do casaco e espalhou-o no chão diante dela. Com muita tentação, ajoelhou-se e olhou-a suavemente nos olhos. 

‒ Senhora, eu sei que só nos conhecemos há algumas horas, mas temos muito em comum. Sinto que a conheço desde sempre. Quer se casar comigo e ser minha esposa? 

Ela pegou nas mãos do velhote e disse: 

‒ Sim, eu caso com você! Me sinto muito feliz. 

Aproximou-se e beijou suavemente na bochecha. Então ela disse: 

‒ Disse que tinha duas perguntas para me fazer. Qual é a segunda? 

Ele coçou o pescoço e disse: 

‒ Pode me ajudar a levantar? 

(Autor desconhecido)

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Depoimento de Giuseppe Garibaldi

 

Em carta a Domingos José de Almeida, que exercera o cargo de Secretário da Fazenda da República de Piratini, Giuseppe Garibaldi lembrou com saudade dos amigos e companheiros que, 17 anos antes, haviam sido seus parceiros na Guerra dos Farrapos. É uma carta emocionada que diz o seguinte:  

“Modena, 10 de setembro de 1859. 

Meu prezado amigo, Sr. Almeida. 

Quando eu penso no Rio Grande, essa bela e cara província, quando penso no acolhimento com que fui recebido no grêmio de suas famílias, onde fui considerado filho; quando lembro de minhas primeiras campanhas entre vossos valorosos cidadãos e os sublimes exemplos de amor pátrio e abnegação que deles recebi, eu fico verdadeiramente comovido. E esse passado da minha vida se imprime em minha memória como alguma coisa de sobrenatural, de mágico, de verdadeiramente romântico. 

Eu vi corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. 

Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos contra um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta! 

(...) 

Que o Rio Grande ateste com uma modesta lápide os sítios em que descansam seus ossos. E que vossas belíssimas patrícias cubram de flores esses santuários de vossas glórias é o que ardentemente desejo. 

Por mim abraçai a todos esses amigos e mandai em toda a ocasião ao vosso verdadeiro amigo. 

Giuseppe Garibaldi 

Um grande ator brasileiro

 

Nascimento: 9 de outubro de 1940, Alegrete, Rio Grande do Sul – Falecimento:  12 de maio de 2024, Rio de Janeiro. 

Paulo César de Campos Velho, mais conhecido como Paulo César Pereio, foi um ator brasileiro. Seu primeiro trabalho no cinema foi em 1964, no filme Os Fuzis, dirigido por Ruy Guerra. Foi um ícone do cinema e teatro brasileiro. 

Em uma de suas últimas entrevista, em 2020 ao jornal EXTRA, ele explicou o motivo de ter ido morar no abrigo em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. “Estou aqui desde o começo da pandemia, dessa crise do coronavírus. Achei que vir para cá seria uma maneira de me salvar. Vim para sobreviver. Eu moro em São Paulo, tenho meu apartamento lá. Não teve outro jeito. Mas estou bem de saúde”, disse na época. 

“Nunca na minha vida trabalhei por dinheiro. Trabalhei bastante e nunca fiquei nem estou na penúria. O fato de eu estar aqui pode dar a ideia de que o cara está retirado, mas não estou. Ando aqui com uma tranquilidade absoluta, o que eu não poderia fazer na rua. Aqui tenho comida, sou bem cuidado e estou protegido”, completou. 

E morou no Retiro dos Artistas até a sua morte... 

Uma curiosidade histórica 

O Hino da Legalidade (1961), que teve autoria da letra de Lara de Lemos, e música do ator Paulo César Pereio, tocou exaustivamente na Rede da Legalidade, que se tornou um sucesso da época. 

Hino da Legalidade 

Avante brasileiros de pé,
Unidos pela liberdade.
Marchemos todos juntos de pé,
Com a bandeira que prega a igualdade.
 

Avante brasileiros de pé,
Unidos pela liberdade.
Marchemos todos juntos de pé,
Com a bandeira que prega a liberdade.
 

Protesta contra o tirano,
Se recusa a traição,
Que um povo só é bem grande,
Se for livre como a Nação.
 

Avante brasileiros de pé.
Unidos pela liberdade;
Marchemos todos juntos de pé,
Com a bandeira que prega a liberdade.

Um cavalo querendo viver

 Alcides Vilaça

‒ Mas é só um cavalo... 

‒ Não, senhor. É um cavalo equilibrando-se no espaço mínimo de uma cumeeira, para não morrer. É um cavalo que lutará até o último fôlego antes de se curvar às águas. É um cavalo que ainda espera um pouco de pasto. 

Veja os cascos dele, os músculos tesos, a cauda pensa – tudo imobilizado para poder viver. Sinta a energia guardada dentro dele. Quase se vê nela sua lembrança e esperança de um campo. 

Veja sua imagem multiplicada pela cidade, pelo país, pelo mundo. 

E veja, mas veja mesmo, que o salvaram, que o sedaram, que o protegeram no embarque, que o deitaram no bote, que o levaram dali, que o reanimaram no seco, que o afagaram e o alimentaram. 

Essas imagens todas pairaram acima das águas e dos maus sentimentos, imagens de um cavalo salvo, vejam só, pela dedicação humana. Nosso reino salvo, naquele instante, por um cavalo. 

Para ser tão especial, ele só teve que ser um cavalo querendo viver, resistindo em sua própria barca às penas do dilúvio. E segue agora tendo o nome doce que alguém lhe deu, um nome a que deve atender, quando o chamem: Caramelo.  

A lição do rato para todos nós

 

Um rato foi colocado em cima de um frasco cheio de grãos. Ele estava tão satisfeito por encontrar tanta comida, que já não tinha mais necessidade de buscar comida em outros lugares. 

Depois de comer muito, ele chegou ao fundo do pote. Agora, ele está preso e não consegue sair. 

Com isso aprendemos três lições importantes: 

1ͣ ) Prazeres de curto prazo podem levar a armadilhas de longa duração. 

2ͣ ) Nada é fácil nesta vida. E se for muito fácil, talvez não valha a pena. 

3ͣ ) As medidas certas devem ser tomadas no momento certo, caso contrário, você vai perder tudo o que você tem, inclusive a sua liberdade. 

(Texto de autor anônimo que circula na internet)


A origem do Conto do Vigário

 Narrativa de um grande português

Fernando Pessoa por Isolino Vaz. 

Vivia, há já bastantes anos, algures num Concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador e negociante de gado chamado Manuel Peres Vigário. 

Chegou uma vez ao pé dele um fabricante de notas falsas e disse-lhe: «Sr. Vigário, ainda tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O Sr. quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» 

«Deixe ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» 

O outro, porém, insistiu; Vigário, regateando, cedeu um pouco. Por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma. 

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário quer pagar a dois irmãos, negociantes de gado como ele, o saldo de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em que se deveria efetuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna obscura da localidade, quando surgiu à porta, cambaleante de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de alguma conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha um pagamento a fazer-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Os irmãos disseram que não se importavam; mas, como nesse momento a carteira se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem mil réis. Houve, então, uma troca de olhares entre os dois irmãos. 

O Manuel Peres Vigário contou, tremulamente, vinte notas, que as entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem perdeu tempo em olhar para elas. O Vigário continuou a conversar, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria um recibo. Não era costume, mas nenhum dos irmãos fez questão de não dá-lo. O Manuel Peres disse que queria ditar o recibo, para que as coisas ficarem todas certas. Os irmãos anuíram a este capricho de bêbado. Então o Manuel Peres ditou como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade estúpida do bêbado), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, a quantia de um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, selado e assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e por fim foi-se embora. 

Quando, no dia seguinte, houve ocasião de se trocar a primeira nota de cem mil réis, o indivíduo, que ia a recebê-la, rejeitou-a logo por falsíssima. Rejeitou do mesmo modo a segunda e a terceira. E os dois irmãos, olhando então bem para as notas, verificaram que nem a cegos se poderiam passar. 

Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atônito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira que o havia colhido providencialmente no dia do pagamento e o havia feito exigir um recibo estúpido. 

Lá o dizia o recibo: «um conto de réis “em notas de cinquenta mil réis”». Se os dois irmãos tinham notas de cem, não eram dele, Vigário, que as tinham recebido. Ele lembrava-se bem, apesar de bêbado, de ter pago vinte notas, e os irmãos não eram (dizia o Manuel Peres) homens que lhe fossem aceitar notas de cem por notas de cinquenta, porque eram homens honrados e de bom nome em todo o Concelho. 

E, como era de justiça, o Manuel Peres Vigário foi mandado em paz. 

O caso, porém, não podia ficar secreto. Por um lado ou por outro, começou a contar-se, e espalhou-se. E a história do «conto de réis do Manuel Peres Vigário», passou a ser uma expressão corrente na língua portuguesa. 

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Fernando Pessoa, in Notícias Ilustrado, 2ª série. Lisboa: 18-8-29, e in Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. Europa-América. 


domingo, 12 de maio de 2024

A mãe é sempre a última

 Marisa Sousa

A mãe é sempre a última.

A última a apagar a luz.

A última a adormecer.

A ultima a colocar a comida no seu prato e a comer. 

A mãe é sempre a última a sair de casa,

verificando se não falta nada.

Se está tudo bem.

A mãe é sempre a última a fechar a porta do carro.

A mãe é sempre a última a descansar! 

A mãe é sempre a última...

Talvez porque seja sempre a primeira!

A primeira a telefonar.

A primeira a perguntar.

A primeira a chorar.

A primeira a rezar! 

A mãe é sempre a última,

talvez porque o seu amor seja o primeiro.

O mais forte.

O mais duradouro.

O mais intenso! 

Tenho para mim,

que sendo a última ou a primeira...

Mãe é a candeia que nunca perde a esperança.

O farol que nunca esmorece!

A luz que brilha mais.

Piadas da Seleções do Reader′s Digest

 

Um sujeito chegou tarde ao trabalho. O patrão berrou: 

‒ Você deveria estar  aqui às 9 horas! 

O sujeito retrucou: 

‒ Por quê? O que aconteceu às 9 horas? 

♣ ♣ ♣ 

O médico diz ao homem:

‒ Tenho uma péssima notícia para lhe dar. A cirurgia que fizemos em sua mãe...

‒ Ah, ela não é minha mãe. É minha sogra!

‒ Nesse caso, tenho uma boa notícia para lhe dar! 

♣ ♣ ♣ 

Três sujeitos discutiam sobre quem tinha a profissão mais antiga.

‒ Não que eu queira contar vantagem ‒ disse o marceneiro ‒, mas os meus antepassados construíram a Arca de Noé!

‒ Isso não é nada! ‒ disse o jardineiro. ‒ Meus antepassados fizeram o Jardim do Éden!

‒ Tudo bem ‒ disse o eletricista ‒, mas quando Deus disse “Faça-se a luz”, quem vocês acham que tinha puxado toda a fiação? 

♣ ♣ ♣ 

Alfredo vê Fernando, depois de muitos dias em que o amigo esteve hospitalizado, e comenta: 

‒ Legal que você teve alta. 

‒ O médico me garantiu que eu ia andar muito bem depois da cirurgia. 

‒ E acertou? 

‒ Em cheio. Até vendi o carro para pagar a operação! 

♣ ♣ ♣ 

Um homem vê a placa na frente de uma casa: “Cão que fala à venda.”. Intrigado, toca a campainha, e o dono lhe mostra o animal.

– Fale-me de você – pede o interessado pelo cachorro.

O cachorro responde, falando um inglês fluentemente:

– Eu descobri que tinha esse dom quando era filhote. A CIA me contratou, e logo eu viajava pelo mundo, sentado aos pés de espiões e líderes mundiais, descobrindo informações importantes para enviar ao país. Quando me cansei dessa vida, entrei para o FBI, onde ajudei a capturar traficantes de drogas e contrabandistas de armas. Fui ferido no cumprimento do dever, recebi algumas medalhas e agora estão até fazendo um filme sobre a minha vida.

– Quanto você quer pelo cachorro? – pergunta o comprador ao proprietário.

– Dez dólares – responde o homem.

O homem não consegue acreditar.

– Por que você vai vender esse cachorro extraordinário por tão pouco?

– Porque ele é muito mentiroso!

sábado, 11 de maio de 2024

Não era só um cavalo...

 

Não era só um cavalo...

Era um monumento vivo

Dos andarengos da Ibéria

Que mesclou em cada artéria

Do rubro sangue nativo

O ancestral primitivo,

‒ Cara limpa, lombo nu ‒

Que carregou o xiru

Pelas terras missioneiras

E que tombou nas fileiras

Das tropas de Tiaraju. 

Não era só um cavalo...

Era a própria imagem

Do Rio Grande açoriano,

Que alargou meridianos

Pelas rotas de passagem,

Era o cavalo selvagem

Rasgando campo e fronteira

Perdido na polvadeira

Ou entre a chuva e o vento,

E que invadiu Sacramento

Com Dom Cristóvão Pereira. 

Não era só um cavalo...

Era o esteio da lida,

Que a cada marcha tropeira

Se fez alma aventureira

Pra ofertar a própria vida,

E nesta saga sofrida

De desbravar o sertão,

Percorreu cada rincão

Desse Brasil continente,

Sustentando nossa gente

Pra erguer uma Nação. 

Não era só um cavalo...

Era um herói da terra

Que a história não menciona,

E que o covarde abandona

No entrevero da guerra!

Que vendo a morte, não berra,

Porque engole o sofrimento

‒ Soldado sem regimento

Da velha estirpe proscrita ‒

Que foi garupa pra Anita

E montaria de Bento. 

Não era só um cavalo...

Era o Rio Grande em pelo!

E no horizonte da incerteza

Enfrentou a natureza

Neste último atropelo,

Tostado sem marca e selo

Pelo-duro que se amansa,

Que na rédea é uma balança

E na vida é um regalo

Cavalo que é bom cavalo

Pro trabalho e pras crianças. 

E não era só um cavalo...

Era também um amigo,

E um amigo não fica pra trás... 

Osmar Ransolin

 


Essa tristeza tem que ter fim

J.J. Camargo* 

Afora as enormes dificuldades de recuperação das perdas materiais, ainda teremos que conviver com a aniquilação anímica. 

“Sinto uma tristeza infinita das ruas de Porto Alegre por onde jamais passarei.” 

(Mario Quintana, em O Mapa)

Cinco de maio, um domingo triste, que amanheceu chuvoso, como se ainda houvesse mais o que chover. 

(...) 

Enquanto escrevia, apareceu o sol, meio tímido, provavelmente constrangido pelo tempo em que se escondeu, deixando-nos cobertos de nuvens, carregadas de tragédia. 

São tantos dias e noites de entrega a mais desesperada de todas as lutas: a da sobrevivência, que agora põe os remanescentes a caminhar com ar de zumbi, sem saber para onde ir. É triste vê-los esmagados pela dor da perda e consumidos pela fadiga do sofrimento. Assumem esse estado de letargia gerado por desespero sem trégua e olham os escombros sem nenhuma certeza de que conseguirão recomeçar. 

Fora das guerras convencionais que sempre expõem o lado monstruoso da humanidade, parece incrível que estas tragédias coletivas regionais consigam reproduzir este sentimento universal de desalento, que mistura revolta, perplexidade, desespero e luto e, por fim, extingue a capacidade de protestar, última trincheira diante do caos. 

É irracional acreditar que se pode reanimar pessoas que ainda não tiveram tempo nem oportunidade de ressurreição da catástrofe do ano passado, e quando encontraram forças que ignoravam ter, e cheios de tola esperança, acreditaram que agora as coisas iriam melhorar, para então descobrir, do nada, que aquela tragédia podia voltar, e ainda pior. 

Afora as enormes dificuldades de recuperação das perdas materiais, ainda teremos que conviver com a aniquilação anímica, especialmente da população mais pobre, vítima natural de todas as desgraças que imponham a necessidade de reconstrução. 

Um dos ocorridos mais impactantes, com direito a lágrimas do relator, foi de um barqueiro que tomou para a si o resgate de três meninas e, ao arrancar, uma delas lhe pediu: “Tio, apanhe aquela boneca ali pra mim!”. Ao se aproximar, ele percebeu que a “boneca” era um bebê afogado. 

Como nunca nos acostumamos com a dor da perda, qualquer perda, ficou doendo em mim a imagem do garoto chorando abraçado no seu cãozinho morto trazido pela correnteza cruel. Ou do criador de cavalos que viu seu haras invadido pelas águas e, para sobreviver, refugiou-se no sótão, de onde assistiu a seu plantel de dezenas de éguas morrerem afogadas. 

Nessa situação, uma experiência devastadora que sempre se repete é a busca por desaparecidos, alimentada pela esperança, que se torna irracional depois de um tempo, mas que os desesperados nunca permitem que ela morra, porque a morte da esperança é a soma de todas as mortes. 

Pensei nisso quando descobri, encantado, uma página do Instagram aberta pelo pessoal da Ulbra, para mostrar fotos de crianças resgatadas vivas, à espera de que os pais, que nunca desistem de acreditar em milagre, viessem buscá-las. 

Por fim, depois de um dia deprimente, chegou como um raio de alento a atitude de Diego Costa, que convocou amigos com jet-ski para resgatar sobreviventes e se envolveu diretamente no salvamento de dezenas de pessoas. Um “estrangeiro” importado pelo Grêmio mostrou que fazer gols não é sua única habilidade. Obrigado, Diego, pelo exemplo, Estávamos precisando disso. 

******* 

* J.J. Camargo é cirurgião torácico, diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre e membro titular da Academia Nacional de Medicina. 

(Do jornal Zero Hora, 11 de maio de 2024)