Raul Annes Gonçalves
Sem exceção alguma todo gaúcho usa
faca. Às vezes até duas. Uma pequena para picar o fumo e aparar a palha para o
cigarro, outra grande para qualquer trabalho. Alguns, em vez de usar a faca
grande, usam o facão ou adaga. Aqui, vamos nos referir como os gaúchos usam a
faca, não entraremos em detalhes sobre os diferentes tipos de facas.
O gaúcho leva sua faca na cintura,
atrás, entre o cinto e a bombacha, com o cabo voltado para a direita ou para a
esquerda, se for canhoto. Se usar também uma pequena, é enfiada adiante ou
metida de um lado. Quando um gaúcho crava um espinho na mão ou no pé, logo dá
de mão na faca para tirá-lo. Se suas unhas estão sujas, limpa-as com a ponta da
faca, e se estão crescidas, também é com a faca que as corta. Às vezes, a faca
também é empregada como palito.
Recorrendo o campo, se encontra um
animal morto e em estado de putrefação, tornando-se impossível tirar o couro, o
campeiro procura aproveitar um pedaço, coureando a parte ainda firme, fio do
lombo e costilhar. Crê o gaúcho que o couro meio ardido é mais forte para se
fazer cordas. Nesse trabalho, sua faca passa a cortar partes do animal já em
adiantado estado de decomposição, com forte mau cheiro, cheio de vermes, carne
azulada em escorrimento de água, viscosa, proveniente da podridão dos
intestinos. Terminada a coureada, o gaúcho limpa sua faca nos pastos ou no
lombo de um cachorro e a põe na bainha. Lava as mãos na primeira água que
encontrar, e assim, ele como a faca, ficam prontos para entrar em ação na
primeira oportunidade que for preciso. Ao chegar na estância ao meio dia, se em
vez de comida de panela tiver um assado no espeto ou nas trempes, à hora de
cortar, o gaúcho puxa pela faca e corta no assado.
Quando aparece uma rês com um tumor,
o gaúcho a examina. Se estiver um tanto mole no interior, sinal que deve ser
lancetado, isto é, está maduro e é necessário dar saída ao pus. Neste caso o
gaúcho procura entre os companheiros uma faca pontiaguda e bem afiada, e com
ela dá um ligeiro pontaço por baixo da parte volumosa, quadrando antes o corpo
para um lado a fim de não ser atingido no rosto ou na roupa pela matéria de cor
amarelada e fedentina, que logo é expelida pelo orifício produzido pela faca.
Feita a operação, o gaúcho limpa a faca nas gramas e a devolve ao dono. Este,
meio desgostoso, por sua vez a limpa no cano da bota e a enfia na bainha. Na
hora da comida, se houver fervido à mesa, o gaúcho saca da faca, pois na mesa
só tem garfo e colher, e sem pestanejar começa a descamar o “puchero”, pedaço
por pedaço com a ponta da faca e o dedo polegar, levando-os à boca tranquilamente.
Se ao carnear lhe toca sangrar, o
gaúcho apoia a mão esquerda nas cruzes da rês e com agilidade e maestria,
empunhando a faca com a direita, enfia-lhe o ferro até o cabo no sangrador,
isto é, no peito. Ao retirar a faca, o sangue jorra aos borbulhões. O campeiro
limpa a faca passando-a nos pastos ou na crina do cavalo, e a coloca na
cintura, sem garbo algum pela perícia com a qual acertou bem a sangria. Mas,
ufano de sua faca, exclama em tom de troça, “eta faca buena, me dá vontade de
botar ela no bolicho para comprar de novo”.
A castração de terneiro e de
cordeiros é feita só com a faca, sem cuidado algum. Porém, para castrar um
cavalo, o gaúcho além de afiar com esmero a sua faca, a lava com água e sabão,
como também a parte externa do animal que vai ser apevada. Parece que é só
neste caso que o campeiro cuida do asseio de sua faca.
Contam de um gaúcho que usava uma bonita
faca de cabo prateado e andou na revolução de 93. Uma ocasião prontificou-se
para degolar uns inimigos prisioneiros conhecidos como bandidos e responsáveis
pela matança de uns de seus companheiros de arma. Findou a revolução e tempos
depois, em uma festa de casamento, este gaúcho notando que a dona da casa
estava mal de faca para cortar os assados, sem escrúpulo algum, ofereceu-lhe
sua bonita faca de cabo de prata, que foi aceita pela senhora. O gaúcho vendo
com que agilidade e perícia sua faca, nas mãos da dona da casa, trinchava um
leitão assado, não se conteve e entusiasmado gritou: “oigalê faca bem ensinada,
também por estes mundos afora pelou muito... (os que estavam presentes e o
conheciam olharam-se espantados, porém riram satisfeitos quando o atrevido gaúcho
terminou sua frase dizendo)... couro para lonca!”
Antigamente era comum os gaúchos
velhos dizerem para os jovens que ainda não usavam faca, por não lhes ser
permitido devido a pouca idade: “homem sem faca é como mulher sem camisa”.
Naquele
tempo, entre as mulheres, isso não era admitido. Andar desprovida desta peça de
vestuário era humilhante, mesmo um vexame.
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Do livro “Mala de
Garupa − Costumes Campeiros”
Martins Livreiro − Editor
Martins Livreiro − Editor
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