Hylario Corrêa
“Senhor redator: Como funcionário
público, tenho que fazer prova de que participei da Revolução
Constitucionalista, a fim de fazer jus às vantagens que a lei me confere.
Entretanto, não guardei sequer o capacete de aço que usei por três meses de
puro entusiasmo bandeirante e de ardor bélico. Joguei-o no rio Tietê,
juntamente com tudo que pudesse denunciar-me como participante de um movimento
armado. Como poderia eu suspeitar, naquela ocasião, que mais tarde iríamos ser
recompensados pelo que nos momento era motivo de cadeia e exílio?
Peço-lhe o favor de publicar a minha
história. Juntá-la-ei depois nos autos do meu processo reivindicatório.
Participei da guerra que os paulistas
fizeram em 1932. Um dia, tivemos ordem de assaltar o inimigo à baioneta. O
plano era pular da trincheira e correr, correr para a frente, gritando bastante
a fim de desnortear o adversário.
Era tal meu ardor bélico e tanto
corri, que de súbito me vi sozinho. Os companheiros haviam ficado muito para o
lado. Como nosso instinto não tem o senso de linha reta, eu houvera feito um
semicírculo e me achava num flanco da linha de batalha.
Mas estava sozinho mesmo?
Não! A meu lado corria um soldado
baiano ditatorial. Estava me perseguindo. Ou era eu quem o perseguia?
− Está preso! Berrei resfolegando.
− Não senhor! Quem está preso é você!
Paramos. O fuzil tremia em suas mãos.
Ele estava com medo. E eu também.
− Os seus fugiram. Você fugiu. E eu o
prendo, pronto!
− Paulista não foge! Nós saímos da
trincheira. Atacamos vocês. Vocês não esperaram. Quem está preso é você!
Ficamos indecisos. Eu sem saber se
lhe pregava o sabre na barriga ou dava sebo às canelas. Ele, sem optar entre
disparar-me um tiro ou disparar a correr.
Quinze minutos de silêncio.
Afinal, cansado, sentei-me no chão.
− Não tente fugir!
− Não fujo porque preciso vigiá-lo.
E sentou-se também, com o fuzil entre
as pernas.
− Afinal, quem é o prisioneiro?
− É você!
− É você!
− É você, baiano pau!
− É você, “Polista” besta!
− Se eu não fizesse questão de
levá-lo vivo ao P.C., dava-lhe um tiro pelo insulto.
− Você não pode atirar contra a sua
guarda. É do regulamento.
Silêncio.
− O que você tem no cantil?
− Água que passarinho não bebe. É da boa, de
Parati...
− Me dá um gole.
− Vá lá! O regulamento militar diz
pra tratar bem os prisioneiros.
− Uma história. O cantil é meu porque
você é presa de guerra e bem assim tudo o que você traz.
Já não se ouvia mais nem um tiro. O
combate cessara. Ignorávamos quem levara a melhor, se os constitucionalistas,
se os ditatoriais.
Eis que de repente aparece terceira
personagem.
− Estou perdido, pensei eu. O tal é
deles. Dois contra um!
− Estou perdido, foi o pensamento que
brilhou nos olhos do baiano. O tal é “polista”. Dois contra um!
− Estou perdido, falou o tal. Vocês
são dois! Por favor, não me prenda! Sou brasileiro como vocês!
− Que você é brasileiro, é certo. Mas o que
você é: rebelde ou ditatorial?
O rapaz coçou a cabeça, olhou, olhou
e enfim respondeu:
− Ome, eu não sou nada. Nem sei pra
que tanto barulho. Só sei que esta revolução não acaba mais e eu quero é voltar
para casa.
− Coa a breca, isso é falar certo. E
eu também estou doido para voltar ao meu pessoal.
− Eu também, parceiro! Toque! Aceita
um gole de cachaça, camarada?
E a pinguinha nacionalizadora
confraternizou na mesma boca de cantil três vezes beijada, os heróis do
encontro.
Mas depois de esgotado o cantil, o
recém-vindo, que mais a cheio entrara na confraternização líquida, ficou
valente e gritou:
− Afinal, se vocês querem me prender,
leve o diabo! Sou paulista e um paulista vale por dois!
Ouvindo isso, o termômetro de minha
coragem subia enquanto que o do baiano descia baixo de zero.
− Então, siô, agora teje preso de
verdade! Camarada, vamos levar esse ditatorial pro tenente!
E orgulhosos, de baioneta calada, numa
compenetração militarista que faria inveja a um oficial prussiano, marchamos em
busca do P.C., levando nosso prisioneiro e a meditar nos comentários e inveja
que nosso heroísmo suscitariam...
(Do Almanhaque do
Barão de Itararé”, de 1949)
Hylário Corrêa, também Hilário
Correia – Nascido em 13 de janeiro de 1910 em Sorocaba, Hilário Correa foi
escritor, poeta, jornalista e militante esquerdista. Filho do ferroviário
Salvador Corrêa e de Margarida Corrêa.
Foi o primeiro voluntário da
Revolução de 1932, levando consigo vários outros colegas. Foi preso em 1935,
acusado de participar da Intentona Comunista de 1935. Por volta dessa época
compôs o poema “As tecelãs”. Alistou-se como voluntário, aos 16 anos, para o
Serviço Militar, aprendendo a pilotar avião. Foi entregador de jornal do
Cruzeiro do Sul, passando logo depois para serviços gráficos, redator e
revisor. Publicou inúmeros artigos e poesias na imprensa local e em jornais do
Rio de Janeiro e São Paulo, algumas vezes utilizando o pseudônimo de Hortênsio.
Formou-se em jornalismo no Rio de Janeiro. Pelo seu idealismo foi diversas
vezes preso, sendo companheiro de prisão com outros intelectuais como Monteiro
Lobato e Eduardo Maffei.
Como jornalista trabalhou para os jornais Correio Paulistano, A Gazeta Maçônica
e Cruzeiro do Sul. Poliglota, falava cerca de oito línguas, sendo tradutor de
obras de Victor Hugo. Escreveu ainda o livro de poesias “Vidraça Partida”,
raridade hoje em dia.
Não temos a data do seu
falecimento.