Os vaticínios do major João Eustáquio
Soube a nossa reportagem que, há
dias, vindo do Rio de Janeiro, o major João Eustáquio, cujas profecias por
muito tempo foram publicadas na imprensa carioca e algumas da quais tivemos
ocasião de transcrever.
Um dos nossos companheiros começou
logo a procurá-lo insistentemente, no que gastou muitos dias, até que, na
quarta-feira última, pôde encontrá-lo.
O major hierophante está hospedado em
uma casinhola situada na rua Sertório, nos Navegantes, quase à beira do rio.
É um homem que aparenta ter 60 anos
de idade, gordo, alto, forte ainda, apesar dos anos; usa barbas longas e fuma
cachimbo, um grande cachimbo simbólico, cujo canudo representa uma cobra, com
duas ou três cabeças.
Quando nosso companheiro aproximou-se
da figura popética estava ele sentado num tosco banco, feito de figueira do
mato.
Sem que o repórter do Correio do Povo se anunciasse, hierofante,
sem mudar de posição ou sequer responder a saudação que lhe fora dirigida,
disser vagarosamente:
- Já o esperava por aqui,
meu amigo.
E continuou, como estava, a chupar o
seu grande cachimbo, soltando grossas nuvens de fumo, cujas espirais
acompanhava com o olhar, atentamente, até elas desaparecerem por completo.
No mesmo tom de voz com que recebera
nosso companheiro, foi dizendo:
- Você é jornalista e quer
que eu lhe diga alguma coisa para o seu jornal.
- Se não houver nisso algum
inconveniente...
- Ah, hoje não pode ser.
Venha sexta-feira ao meio-dia, que encontrará tudo pronto sem ter nenhum
trabalho.
O repórter do Correio agradeceu a gentileza e retirou-se sem lhe apertar a mão.
Sexta-feira, à hora marcada, malgrado
a chuva que caía, o nosso companheiro foi ter com o hierofante major, que
apertava, entre os dentes amarelados, o seu simbólico cachimbo.
Depois de poucas palavras, o repórter
desta folha tomou assento junto a uma mesa preta, de três pés.
- Escreva, disse o major
imperiosamente.
Imediatamente, o nosso companheiro
tirou do bolso algumas tiras de papel róseo, o major Eustáquio lançou Mao de
uma, e, guardando-a, começou os seus vaticínios:
- Deixará de existir uma
folha vespertina. Surgirá outra, de grande formato e de pequena duração.
- Um golpe rude sofrerá o
comércio, coma fuga, para o exterior, de três comerciantes. Grandes prejuízos
na praça.
- No mesmo dia, diversos
sentenciados evadir-se-ão, assim como alguns doidos do Hospício São Pedro. Esse
fato colocará em pânico a população desta capital, por muitos dias.
- Haverá uma grande
inundação no Guaíba, causando enormes prejuízos.
- Um sportsman* querido e
vitorioso em vários campeonatos terá um fim tristíssimo, em plena arena.
- Será roubado,
misteriosamente, um riquíssimo negociante.
- A atual crise política
preocupará, seriamente, a população desta cidade, trazendo em constante sobressalto
muita gente graúda.
- Este ano será por demais
aziago para muitos operários devido ao incêndio de diversas fábricas.
- Os que mourejam na
imprensa não serão muito felizes. Um entrará para o hospício, outro morrerá em
duelo e um terceiro terá que mudar de terra.
- Em plena festa, nos
últimos volteios de uma valsa, morrerá subitamente, um dos rapazes mais smarts*
de Porto Alegre.
- Uma noiva, ao entrar na
igreja, matará o noivo com três punhaladas.
- Os bondes elétricos farão
diversas vítimas: dois padres, um forte capitalista, um militar de alta patente
e um velho funcionário público.
- Desabará um andaime,
matando algumas pessoas.
- Pavoroso incêndio
destruirá três grandes trapiches e alguns armazéns.
- Conflito entre estudantes
e povo, por questões políticas.
- Haverá greves, arruaças e
os açougueiros cometerão desatinos.
- A magistratura verá
desaparecer alguns de seus membros, sendo dois aposentados.
-
Prejuízos incalculáveis com a destruição de um grande arquivo.
- Em agosto e setembro, os
médicos terão muito que fazer, a fim de debilitarem uma forte epidemia.
- Um automóvel, em
vertiginosa carreira, precipitar-se-á no Guaíba. Morrerá aí uma família
inteira.
- Na doca haverá um
verdadeiro combate entre lenhadores, carroceiros e policiais.
- Na porta de um cinema
haverá um grosso sarilho. Escândalo sem nome.
- Famosa viela, em uma
noite frigidíssima, terá o alargamento sonhado há tanto tempo.
- Desastres de estradas de
ferro fará correr muitas lágrimas.
- Uma tragédia pugentíssima
tornará malsinada, para sempre, uma das ilhas fronteiras.
Nessa altura, o nosso companheiro
horrorizado com todas essas desgraças, prestes a cair sobre nós e já com medo
que o hierofante dissesse que o mundo acabar-se-ia no dia 31 de dezembro deste
ano, como remate a tantos males, foi tratando de retirar-se da residência do
tremendo adivinho, benzendo-se com a canhota e mandando para bem longe a
lembrança que tivera de ouvir do major João Eustáquio.
Entrevista**
publicada no Correio do Povo de 4 de junho de 1913
* Hierofante é o termo usado para
designar os sacerdotes
da alta hierarquia
dos mistérios da Grécia e do Egito. É o sacerdote supremo, que pode ser chamado também de Sumo
Sacerdote. O exemplo mais popular de alguém que pode ser chamado de
Grande Hierofante é o líder supremo da Igreja Católica Apostólica Romana,
o Papa,
também chamado de Sumo Pontífice.
* Sporstman: desportista.
* Smart: polido, esperto,
enfeitado.
** É claro que esta “entrevista”
trata-se de uma grande gozação de algum cronista da época. Os fatos enumerados
acima como tragédias deviam ser comuns na época, início do século XX, na nossa
cidade. Ou, ainda, de uma brincadeira com as “previsões” que Múcio Teixeira***
fazia seguidamente na imprensa.
*** Múcio Scevola Lopes Teixeira
(Porto Alegre,
13 de
setembro de 1857
-
Rio de Janeiro, 8 de agosto
de 1926)
foi um escritor,
jornalista,
diplomata
e poeta
brasileiro.
Nos seus últimos anos, dedicando-se ao ocultismo,
escreveu sob o pseudônimo Barão Ergonte. É patrono de uma das cadeiras da Academia Rio-Grandense de Letras
e da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.
Foi um dos autores mais prolíficos de seu tempo, escrevendo mais de setenta obras,
entre ensaios, romances, dramas e biografias.