Uma das mais icônicas canções da Música Popular Brasileira, censurada no período da Ditadura Militar, que ocorreu entre 1964 a 1985, ‘Cálice’ começou a ser composta por Chico Buarque e Gilberto Gil na Sexta-feira da Paixão de 1973. O início da produção da música, que só foi liberada para gravação em 1978, foi lembrado por Gilberto Gil.
Gil recorda o convite de Chico para que ele fosse à sua residência no dia seguinte, um Sábado de Aleluia, para que escrevessem juntos a música, tendo mote o ‘cale-se’, em referência à censura por que passavam os artistas e jornalistas da época.
Em óbvia alusão à agonia de Jesus Cristo no Calvário, a letra de Cálice, com um singular jogo de palavras, conseguiu despistar a censura dos militares à mensagem de protesto intrínseca a cada frase. “Eu tive muita dificuldade em lidar com essa música cálice, aliás, até hoje, porque ela é sobre essa coisa da dor, do tormento, sobre repressão, censura, e tem essa história do Pai. Eu tenho impressão que é mais por aí, a primeira pessoa da Santíssima Trindade”, comenta.
(MPB Bossa)
N.B. O cálice, na verdade, se
refere ao que faz as pessoas se calarem diante de um regime ditatorial.
Chico Buarque ‒ Gilberto Gil
Pai, afasta de mim esse
cálice.
Pai, afasta de mim esse cálice.
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
Como beber dessa bebida
amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta.
Mesmo calada a boca, resta o peito,
Silêncio na cidade não se escuta.
De que me vale ser filho da
santa?
Melhor seria ser filho da outra,
Outra realidade menos morta,
Tanta mentira, tanta força bruta.
Como é difícil acordar calado?
Se na calada da noite eu me
dano.
Quero lançar um grito
desumano,
Que é uma maneira de ser
escutado.
Esse silêncio todo me atordoa,
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada para, a
qualquer momento,
Ver emergir o monstro da lagoa.
De muito gorda a porca já não
anda,
De muito usada a faca já não
corta.
Como é difícil, pai, abrir a
porta,
Essa palavra presa na
garganta;
Esse pileque homérico no
mundo,
De que adianta ter boa
vontade?
Mesmo calado o peito, resta a
cuca
Dos bêbados do centro da cidade.
Talvez o mundo não seja
pequeno,
Nem seja a vida um fato
consumado.
Quero inventar o meu próprio
pecado,
Quero morrer do meu próprio
veneno,
Quero perder de vez tua
cabeça,
Minha cabeça perder teu juízo,
Quero cheirar fumaça de óleo
diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.
Cálice é uma canção com muitas metáforas nas quais Chico Buarque e Gilberto Gil usaram para contar sobre a situação em que vivia a sociedade durante a ditadura militar. O desejo expresso na canção é o de se livrar das desigualdades sociais no Brasil nesse período.