domingo, 31 de março de 2024

Cálice ou cale-se?

 

Uma das mais icônicas canções da Música Popular Brasileira, censurada no período da Ditadura Militar, que ocorreu entre 1964 a 1985, ‘Cálice’ começou a ser composta por Chico Buarque e Gilberto Gil na Sexta-feira da Paixão de 1973. O início da produção da música, que só foi liberada para gravação em 1978, foi lembrado por Gilberto Gil. 

Gil recorda o convite de Chico para que ele fosse à sua residência no dia seguinte, um Sábado de Aleluia, para que escrevessem juntos a música, tendo mote o ‘cale-se, em referência à censura por que passavam os artistas e jornalistas da época.   

Em óbvia alusão à agonia de Jesus Cristo no Calvário, a letra de Cálice, com um singular jogo de palavras, conseguiu despistar a censura dos militares à mensagem de protesto intrínseca a cada frase. “Eu tive muita dificuldade em lidar com essa música cálice, aliás, até hoje, porque ela é sobre essa coisa da dor, do tormento, sobre repressão, censura, e tem essa história do Pai. Eu tenho impressão que é mais por aí, a primeira pessoa da Santíssima Trindade”, comenta.   

(MPB Bossa)

N.B. O cálice, na verdade, se refere ao que faz as pessoas se calarem diante de um regime ditatorial.

Chico Buarque ‒ Gilberto Gil 

Pai, afasta de mim esse cálice.
Pai, afasta de mim esse cálice.
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
 

Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta.
Mesmo calada a boca, resta o peito,
Silêncio na cidade não se escuta.

De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra,
Outra realidade menos morta,
Tanta mentira, tanta força bruta.

 Como é difícil acordar calado?

Se na calada da noite eu me dano.

Quero lançar um grito desumano,

Que é uma maneira de ser escutado.

Esse silêncio todo me atordoa,

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada para, a qualquer momento,

Ver emergir o monstro da lagoa. 

De muito gorda a porca já não anda,

De muito usada a faca já não corta.

Como é difícil, pai, abrir a porta,

Essa palavra presa na garganta;

Esse pileque homérico no mundo,

De que adianta ter boa vontade?

Mesmo calado o peito, resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade. 

Talvez o mundo não seja pequeno,

Nem seja a vida um fato consumado.

Quero inventar o meu próprio pecado,

Quero morrer do meu próprio veneno,

Quero perder de vez tua cabeça,

Minha cabeça perder teu juízo,

Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Me embriagar até que alguém me esqueça.

Cálice é uma canção com muitas metáforas nas quais Chico Buarque e Gilberto Gil usaram para contar sobre a situação em que vivia a sociedade durante a ditadura militar. O desejo expresso na canção é o de se livrar das desigualdades sociais no Brasil nesse período.

sábado, 30 de março de 2024

Moradores de rua

 Carpinejar

Raras eram as residências com campanhia. Batiam-se palmas no portão para chamar os residentes. Aplaudíamos os nossos afetos. 

Os portões baixos e destrancados permitiam que a gurizada do bairro matasse a sede nas torneiras do jardim. Se o espaço não contava com a vigília de cachorro bravo, entrávamos sem pedir licença. Também nos servíamos à vontade das frutas das árvores em terreno alheio: bergamoteiras, ameixeiras, mudas de carambola. Tudo o que estava no pé poderia ser colhido, na base do buffet livre. 

Eu não temia moradores de rua. Pois me sentia igual, semelhante. Vivia praticamente nas calçadas, migrando de um pátio a outro. 

A mãe gritava da varanda que a comida estava servida. A voz era uma corda que encerrava as nossas fantasias e aventuras e nos trazia de volta para a realidade. 

A noite não principiava com o escuro, com o surgimento das estrelas no céu, mas com a decisão materna. Tomar banho significava dormir. O suor ficava lá trás, na bola de couro, no pião e no carrinho de madeira. 

Naquele tempo, conhecíamos um por um dos moradores de rua. Assim como tinha o médico de família, tinha o mendigo de família. Assim como tinha o carteiro, tinha o mendigo do bairro. Assim como tinha o entregador de jornal, tinha o mendigo que aparecia sempre na mesma hora, pedindo pão velho. 

Não vinha uma vez e sumia. Vinha sempre, formávamos a sua clientela fixa. Não atendíamos com raiva e pressa. Muito menos desaforávamos sua aparição. Mendigos não incomodavam. Acredito que alimentávamos uma admiração secreta pelo seu despojamento viajante, uma curiosidade pela sua história pregressa. Nunca foram confundidos com ladrões e observadores indiscretos dos pertences de dentro. 

Nosso mendigo se chamava Alfredo. Usava chapéu de feltro e fumava cigarro de palha. Jamais reivindicava dinheiro, trocado, moedas. 

Solicitava pão velho. O que nunca ganhava. Talvez terminasse desapontado, porque acabava recebendo cacetinho quentinho, recém-comprado do armazém. Com a ajuda de um copo de leite, mastigava o pãozinho entre as mãos como uma gaita, com a manteiga ampliando a extensão brilhante dos lábios. 

Falava pouco, pouquíssimo, um cumprimento ao entrar, um agradecimento ao sair. 

A mãe o conduzia para a antessala, não aceitava que ficasse no sereno. E se pegasse resfriado? Nosso tradicional visitante chegava no entardecer. Esquisito que já o aguardávamos nas janelas. Tal qual uma banda. Ele surgia de repente, dobrando uma esquina, como um anjo dobra as asas para não ser reconhecido. 

Ele passou a ser um segundo pai, meu pai da década anterior. Pois doávamos para ele as roupas antigas do meu pai. Tornou-se uma cópia de chave paterna: vestia o pulôver, a camisa de gola, a calça. 

Eu desfrutava da chance de ver meu pai duas vezes ao dia.  

(Do jornal Zero Hora, março de 2024) 

Fabrício Carpi Nejar, ou Fabrício Carpinejar, como passou a assinar a partir de 1998, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro, nasceu em 23 de outubro de 1972, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Pais: o poeta e acadêmico Carlos Nejar,  e a escritora Maria Carpi. 

sexta-feira, 29 de março de 2024

Pegadinha verbal

 Prof. Sérgio Nogueira

Quando você quiser deixar boa impressão com o uso das palavras, é melhor que esteja prevenido. O Português muitas vezes nos prega peças. Pegadinha Verbal mostra alguns dos enganos mais frequentes no nosso idioma. 

Errado: 

“Fui eu que fez o trabalho.” 

Certo: 

“Fui que fiz o trabalho.” 

Quando o sujeito for o pronome relativo “que”, o verbo deve concordar com o antecedente: “Fui eu que fiz”; “Foste tu que fizeste”; “Foi ele que fez”; “Fomos nós que fizemos”; “Foram eles que fizeram”; “Este é o empregado que fez o trabalho” e “Estes são os empregados que fizeram o trabalho”. 

A pegadinha: Com o pronome “quem”, temos duas opções: “Fui eu quem fiz o trabalho” ou “Fui eu quem fez o trabalho”. O verbo pode concordar com o antecedente (eu quem fiz) ou flexionar na 3ͣ  pessoa do singular, concordando com o pronome “quem” (eu quem fez). No Brasil, a preferência é a concordância com o antecedente quando está no plural (= “Fomos nós quem fizemos o trabalho”) e na 3ͣ pessoa do singular quando o antecedente está no singular (= “Fui eu quem fez o trabalho”). 

(In Seleções do Reader's Digest, outubro de 2000)

quinta-feira, 28 de março de 2024

Envelhecer

 

Envelhecer é o único meio de viver muito tempo. 

A idade madura é aquela na qual ainda se é jovem, porém com muito mais esforço. 

O que mais me atormenta em relação às tolices de minha juventude, não é havê-las cometido... é sim não poder voltar a cometê-las. 

Envelhecer é passar da paixão para a compaixão. 

Muitas pessoas não chegam aos oitenta porque perdem muito tempo tentando ficar nos quarenta. 

Aos vinte anos reina o desejo, aos trinta reina a razão, aos quarenta o juízo... 

Quando se passa dos sessenta, são poucas as coisas que nos parecem absurdas. 

Os jovens pensam que os velhos são bobos; os velhos sabem que os jovens o são... 

Sempre há um menino em todos os homens. 

A cada idade lhe cai bem uma conduta diferente. 

Os jovens andam em grupo, os adultos em pares e os velhos andam sós. 

Feliz é quem foi jovem em sua juventude e feliz é quem foi sábio em sua velhice. 

Todos desejamos chegar à velhice e todos negamos que tenhamos chegado. 

Não entendo isso dos anos: que, todavia, é bom vivê-los, mas não tê-los. 

Albert Camus

quarta-feira, 27 de março de 2024

Vergonhas

 As sete maiores vergonhas da história do Brasil

A pedido da Trip, a antropóloga Lilia Schwarcz e a historiadora Heloisa Starling, autoras do recém-lançado “Brasil: uma biografia’’, fazem uma lista dos episódios mais vergonhosos da história nacional. 

No livro, com acesso a documentação inédita e vasta pesquisa, as autoras traçam um retrato completo do país. Dão conta não somente da “grande história”, mas também do cotidiano, da expressão artística e da cultura, das minorias, dos ciclos econômicos e dos conflitos sociais. E, claro, falam também sobre os momentos tensos, de vergonha. 

São eles: 

1 ► Genocídio da população indígena 

Até os dias de hoje há controvérsia sobre a antiguidade dos povos do Novo Mundo. As estimativas mais tradicionais mencionam 12 mil anos, mas pesquisas recentes arriscam projetar de 30 mil a 35 mil anos. Sabe-se pouco dessa história indígena, e dos inúmeros povos que desapareceram em resultado do que agora chamamos eufemisticamente de “encontro” de sociedades. Um verdadeiro morticínio teve início naquele momento: uma população estimada na casa dos milhões em 1500 foi sendo reduzida aos poucos a cerca de 800 mil, que é a quantidade de índios que habitam o Brasil atualmente. 

2 ► Sistema escravocrata 

O Brasil recebeu 40% do total de africanos que compulsoriamente deixaram seu continente para trabalhar nas colônias agrícolas do continente americano, sob regime de escravidão, num total de cerca de 3,8 milhões imigrantes. Fomos o último país a abolir a escravidão mercantil no Ocidente (só o fazendo em 1888, e depois de muita pressão) e o resultado desse uso contínuo, por quatro séculos, e extensivo por todo o território foi a naturalização do sistema. Escravos eram abertamente leiloados, alugados, penhorados, segurados, torturados e assassinados.  

3 ► Guerra do Paraguai 

O Império brasileiro errou em cheio. Avaliou-se que a contenda internacional opondo, de um lado, Brasil, Uruguai e Argentina, e, de outro, o Paraguai seria breve e indolor. No entanto, a guerra – na época chamada de “açougue do Paraguai” ou de “tríplice infâmia” – durou cinco longos e doloridos anos: de 1865 a 1870. A consequência para o lado paraguaio não foi apenas a deposição de seu dirigente máximo, mas a destruição do próprio Estado nacional. Os números de mortes sofridos pelo país são até hoje controversos e oscilam entre 800 mil e 1,3 milhão habitantes. Quanto às estatísticas brasileiras, a relação de homens enviados varia de 100 a 140 mil.  

4 ► Canudos 

Em 1897, a República abriu guerra contra Canudos: uma comunidade sertaneja originada de um movimento sociorreligioso liderado por Antônio Conselheiro. Canudos incomodou o governo da República e os grandes proprietários de terras, pois era uma nova maneira de viver no sertão. Em 1897, o arraial foi invadido por tropas militares, queimado a querosene e demolido com dinamite. A população foi dizimada. Em Os sertões, publicado em 1902, Euclides da Cunha escreve:  “Canudos não se rendeu. Caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, e todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”.  

5 ► Polícia política do Governo Vargas 

Em 1933, Getúlio Vargas criou a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (Desp). Para comandá-la, Vargas entronizou o capitão do Exército, Filinto Müller. Na condição de chefe de polícia, Müller não vacilou em mandar matar, torturar ou deixar apodrecer nos calabouços do Desp os suspeitos e adversários declarados do regime sem necessidade de comprovar prática efetiva de crime. Pró-nazista, sua delegacia manteve um intercâmbio, reconhecido pelo governo brasileiro, com a Gestapo – a polícia secreta de Hitler – que incluía troca de informações, técnicas e métodos de interrogatório.  

6 ► Centros clandestinos de violação de direitos humanos

A ditadura militar instalou, a partir de 1970, centros clandestinos que serviram para executar os procedimentos de desaparecimento de corpos de opositores mortos sob a guarda do Estado – como a retirada de digitais e de arcadas dentárias, o esquartejamento e a queima de corpos em fogueiras de pneus. No Brasil governado pelos militares, a prática da tortura política e dos desaparecimentos forçados não foi fruto das ações incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatação reside o escândalo e a dor.  

7 ►Massacre do Carandiru 

Mais conhecida como Carandiru, a Casa de Detenção de São Paulo abrigava mais de 7 mil detentos, em 1992 – a capacidade oficial era de 3.500 pessoas. No dia 2 de outubro, uma briga entre facções rivais de presidiários terminou num massacre: a tropa policial entrou no presídio utilizando armamento pesado e munição letal. 111 presos foram mortos e 110 feridos. O cenário era de horror. Passados 21 anos, somente em 2014, 73 policiais foram condenados – todos podem recorrer em liberdade.  

(revistatrip.uol.com.br)

segunda-feira, 25 de março de 2024

O círculo vicioso do medo

 J.J. Camargo*

Todos estamos assombrados com o rumo que a vida moderna assume, pautada pela arbitrariedade, regida pela violência e estimulada pela impunidade. 

A melhor definição de medo vem de Mark Twain: “Os piores problemas que tive em minha vida nunca ocorreram”. 

Ter medo foi, sem dúvida, a grande lição que a minha geração aprendeu nessas últimas décadas. E na contramão da inteligência que nos encanta, o nosso medo não tem nada de artificial. É real ‒ e sufoca. 

Dando-se o tempo de revisitar o passado, percebemos o quanto vivíamos com mais espontaneidade, e era tão natural que fosse assim, que ninguém valorizava esta liberdade, porque simplesmente não tínhamos ideia da maravilha que era e do quanto o futuro nos reservava de perda. 

Circulávamos por todos os lugares sem nenhuma preocupação se era dia ou noite, porque isso não fazia a menor diferença. Como seres naturalmente gregários, andávamos em bandos pela mais inocente das razões: quanto mais parceiros, mais companhia disponível para brincadeiras, deboche e zoação. 

Hoje, as crianças trocaram as brincadeiras na calçada pela solidão segura e insossa das redes sociais, enquanto os adolescentes, antes de pisar na rua, já são alertados que este é o lugar onde mora o perigo, que o solitário é a vítima preferencial, e que o bando, antes de ser parceria, é um escudo protetor. 

Como consequência, os jovens se divertem menos, enquanto os pais, pressionados pela necessidade intransferível de dar ao filho a liberdade de descobrir-se capaz de enfrentar o mundo, fingem naturalidade enquanto veem TV sem prestar atenção, e depois, constritos de angústia, aguardam que a última luz do quarto das “crianças” se apague para que eles possam dormir aliviados, por mais uma madrugada sem sobressaltos. 

Os pobres pais, antes classificados como exagerados e opressores, hoje são reconhecidos como prudentes e realistas. A tentativa de proteger as crias servindo-se da tecnologia disponível explica a quantidade de pimpolhos carregando, com algum deslumbramento, os seus celulares modernos que têm, em princípio, a função de substituírem os braços longos e os olhos atentos de pais assustados. 

Claro que é bom tê-los ao alcance de um chamado, e por essa vantagem ignora-se que o porte desses objetos de cobiça aumenta a chance de exposição ao assalto e a experiência inesquecível de conviver com a sensação de impotência que provamos quando somos assaltados. 

Sem contar a ansiedade que aperta a garganta dos pais toda vez que uma ligação não é prontamente atendida. 

O noticiário cotidiano com latrocínios, lutas entre facções do tráfico e um festival de balas perdidas banalizou a morte e instituiu o círculo vicioso do medo. Na verdade, todos estamos assombrados com o rumo que a vida moderna assume, pautada pela arbitrariedade, regida pela violência e estimulada pela impunidade. 

Mais temerosa está a minha geração, que provou a leveza de viver sem mordaças, muros altos, cercas elétricas, alarmes, cães de guarda e serviços de vigilância, antes da chegada implacável dessa epidemia, onde até a desconfiança nos sistema nos constrange e desespera, porque pronuncia o mais irresgatável de todos os medos: o de ser feliz. 

۞۞۞۞۞ 

*J.J. Camargo é cirurgião torácico, diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre e membro titular da Academia Nacional de Medicina. 

(Do caderno Vida, do jornal Zero Hora, 23 de março de 2024)

domingo, 24 de março de 2024

Lealdade Feminina

 

“Se um dia tiver que escolher entre o mundo e o amor...

Lembre-se: Se escolher o mundo, ficará sem o amor,

mas se escolher o amor, com ele conquistará o mundo!” 

Albert Einstein 

Durante a Idade Média, no ano de 1141, na Alemanha, Wolf, o Duque da Bavária estava cercado em seu castelo pelos exércitos de Frederick, Duque da Suábia, e de seu irmão Konrad. 

O cerco vinha de muito tempo, e Wolf sabia que a rendição era inevitável. Mensageiros iam e vinham, levando propostas de acordo, condições e decisões. Derrotados, Wolf e seus aliados estavam dispostos a entregar o castelo ao pior inimigo. Mas as mulheres desses homens não estavam nem um pouco preparadas para a derrota. Enviaram uma mensagem a Konrad, irmão do duque inimigo, pedindo a promessa de salvo-conduto para todas as mulheres das cercanias do castelo e permissão para que elas levassem todos os bens que pudessem carregar. 

A permissão foi concedida e os portões do castelo se abriram. As mulheres foram saindo, levando consigo estranha carga. Não traziam ouro ou joias. Cada uma vinha curvada sob o peso do marido, na esperança de salvá-lo da vingança dos inimigos vitoriosos. 

Dizem que Konrad, bom e piedoso de fato, comoveu-se até às lágrimas diante daquela atitude extraordinária. Apressou-se em garantir a liberdade às mulheres e segurança aos maridos. Convidou a todos para um grande banquete e fez um acordo de paz com o duque da Bavária em termos mais favoráveis que o esperado. 

Desde então o monte onde estava situado o castelo passou a ser chamado de “Lealdade Feminina”. 

As mulheres, desconhecendo a força de que são portadoras, muitas vezes saem a campo para disputar forças com os homens. Desconhecem que, no dia em que quiserem, mudarão o mundo. À mulher cabe uma importante quota de contribuição com a obra de Deus, oferecendo a sua sensibilidade e a sua inteligência em favor da vida, uma vez que cabe a ela o conduzimento dos homens, dando-lhes as primeiras noções de vida. Assim, se estas mulheres resolvessem mudar a sociedade, bastaria tomar as mãos do homem, ainda criança, e fazer dele um homem justo, um homem de bem. Mas para que isso aconteça, é preciso que todos, homens e mulheres tomem consciência da sua missão na face da terra, que está muito além da disputa de forças e de conquistas de bens materiais. 

Um dia, um casal discutia sobre os problemas domésticos. Em determinado momento estavam disputando quem representava o cabeça do casal. Isso era quando ainda existia na legislação brasileira esse papel. Após alguns argumentos, a mulher falou com muita sabedoria: “De fato você é o cabeça perante a lei, mas eu sou o pescoço, e se eu amanhecer com torcicolo você estará com dificuldades, pois perderá totalmente os movimentos.” Todos riram e o assunto ficou encerrado. Todos nós, homens e mulheres, somos filhos de Deus criados para a perfeição. Se temos que disputar alguma posição, que seja a de mais servir ao criador com coragem e disposição. 

(Texto da internet de autor desconhecido)

sexta-feira, 22 de março de 2024

Cauby Peixoto: cantei, cantei.

 Mestre do show business e ídolo popular, 

fez shows até o fim da sua vida.

Cauby Peixoto – foto de 2015

O cantor de Cauby Peixoto era ouvido pelos corredores do hospital onde estava internado em março de 2015 ‒ para exames de rotina, segundo Nancy Lara, fã que se tornou sua fiel empresária. Assim, cantando por prazer, o artista teve a ideia de seu último disco, “A bossa de Cauby Peixoto” (“Vamos gravar bossa nova!”, disse, numa visita do produtor Thiago Marques Luiz). 

‒ Continuo com a voz que Deus me deu, não desafino, estou gravando. Eu acredito na força da natureza e que nasci para levar a vida cantando ‒ afirmou, à época. 

O episódio ilustra a relação apaixonada de Cauby com a música. Relação que começou em 10 de fevereiro de 1931, quando nasceu, em Niterói, numa família de instrumentistas. Seu pai era o violonista Cadete, seu tio era o pianista Nonô. Seu primo (o cantor Ciro Monteiro) e seus irmãos (o pianista Moacyr Peixoto, o trompetista Arakén Peixoto e a cantora Andyara) também construíram carreira na área. 

No colégio de padres salesianos, Cauby cantou no coro. Mas apenas na virada dos anos 1940 para os 1950 ele começaria a tentar a sorte como calouro no rádio e como crooner em boates do Rio. Em 1951, gravou pela primeira vez. No ano seguinte, foi para São Paulo, onde conheceu Di Veras, empresário que impulsionaria sua carreira. 

‒ Meu empresário, Di Veras, inventou mentiras: que minha voz tinha seguro de três milhões, que eu era o recordista de cartas, de fotos. E eu ajudava: fazia o tipo modelo, gostosão ‒ contou.

As cenas das roupas rasgadas pelas fãs também faziam parte do planejamento de Di Veras, que preparava paletós com costuras fracas, fáceis de serem rompidas. Falsos “noivados” também foram criados para fortalecer sua imagem de galã viril. Mas as estratégias de Di Veras não teriam tido o mesmo efeito se Cauby não fosse Cauby ‒ o artista que se definiu em 2001 como “o resultado fantástico da carreira sólida conciliada com a fama”. A frase sintetiza o cantor. Estão ali a vaidade, a certeza da condição de estrela, a afirmação do talento indubitável e o conhecimento do show business. Poucos na música brasileira souberam como Cauby ‒ e nenhum antes dele ‒ ocupar o lugar de ídolo popular. 

A trilha de sucesso começaria com “Blue gardênia”, seu primeiro sucesso, em 1954. Em 1956, ano de “Conceição”, já era o cantor mais popular do Brasil. Na época, Cauby chegou a tentar uma carreira nos Estados Unidos, onde se lançou como Ron Coby. 

Seguiu firme na década de 1960, apesar da chegada da bossa nova e da geração dos festivais. Mas, nos anos 1970, foi perdendo força na mídia, embora continuasse gravando (inclusive repertório de compositores jovens, o que de alguma forma sempre fez ao longo da carreira). Foi nessa década também que começaram a surgir referências na imprensa a seus problemas de audição, que o acompanharam até o fim da vida, sem impedi-lo de cantar. 

A volta de Cauby viria apenas em 1980, impulsionada por “Bastidores” (de Chico Buarque). O disco tinha ainda “Cauby! Cauby!”, faixa-título de Caetano Veloso, “Dona Culpa”, de Jorge Ben, “Oficina”, de Tom Jobim, e “Brigas de amor”, de Roberto e Erasmo Carlos. 

A partir dos anos 1980, com maior ou menor frequência na mídia e nos estúdios, seguiu sendo reverenciado. Ganhou prêmios, uma biografia (“Bastidores”, de Rodrigo Faour), um musical (“Cauby”, no qual foi vivido por Diogo Vilela) e um documentário (“Cauby ‒ Começaria tudo outra vez”, de Nelson Hoineff). No ano passado, o artista iniciou a turnê “120 anos de música”, ao lado de Ângela Maria, que passou pelo Teatro Municipal. 

No filme de Hoineff, de 2015, o cantor falou sobre sua sexualidade, assunto que sempre evitava (“Eu era um garoto quando ia para os morros transar com os veados. Depois, eu comecei a ter namoradas”). 

O cantor morreu em 15 de maio de 2016, aos 85 anos, vítima de uma pneumonia*. Ele estava internado no Hospital Sancta Maggiore, em São Paulo. 

Cauby foi enterrado no cemitério de Congonhas. Antes, seu corpo foi velado ao longo do dia na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Amigos como Ângela Maria estiveram presentes: 

‒ Eu não esperava que ele fosse tão cedo. Perdi não só um amigo, mas um irmão. A música que eu mais gostava de cantar com ele era “Ave Maria do Morro” ‒ disse Ângela. 

Matéria publicada no caderno Cultura de O Globo, em 28.04.2021 

* Há vacinas contra pneumonia, que é recomendada principalmente para idosos com baixa imunidade.

quinta-feira, 21 de março de 2024

A importância do Sargento

 

Dois leões fugiram do Jardim Zoológico. Na fuga, cada um tomou um rumo diferente. Um dos leões foi para as matas e o outro foi para o centro da cidade. Procuraram os leões por todo o lado, mas ninguém os encontrou. Depois de um mês, para surpresa geral, o leão que voltou foi justamente o que fugira para as matas. Voltou magro, faminto, alquebrado. Assim, o leão foi reconduzido a sua jaula. 

Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrou do leão que fugira para o centro da cidade, quando um dia, o bicho foi recapturado. E voltou ao Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde. Mal ficaram juntos de novo, o leão, que fugira para a floresta, perguntou ao colega: 

- Como é que conseguiste ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com saúde? Eu, que fugi para a mata, tive que voltar, porque quase não encontrava o que comer! 

O outro leão então explicou: 

- Enchi-me de coragem e fui esconder-me num quartel. Cada dia comia um militar e ninguém dava por falta dele. 

- E por que voltaste então para cá? Tinham acabado os militares? 

- Nada disso. Militar é coisa que nunca se acaba. É que eu cometi um erro gravíssimo. Tinha comido o General, dois Coronéis, cinco Majores, três Capitães, dez Tenentes da AMAN, doze Aspirantes, quinze Oficiais QCO, várias OTTs, comi dezenas de militares e ninguém deu por falta deles! Mas, no dia em que eu comi um Sargento... Estraguei tudo! Furou o mapa da força... Deram parte de ausência! Declararam desertor, busca, diligência.... fui descoberto!

quarta-feira, 20 de março de 2024

Faze da tua casa uma festa!

 Neneca Pereira

Faze da tua casa uma festa!
Ouve música, canta, dança, compõe, toca um instrumento.
Faze da tua casa um templo!
Reza, ora, medita, silencia, acalma, pede, agradece.
Faze da tua casa uma escola!
Lê, escreve, pesquisa, desenha, pinta, borda, costura, 
estuda, aprende, ensina.

Fotografa e faz algum curso.
Enfim, faz da tua casa um local criativo de amor.
 

Faze da tua casa uma loja!
Limpa, arruma, organiza, decora, etiqueta, vende, doa.
Faze da tua casa um restaurante!
Cozinha, come, prova, cria receitas, cultiva temperos, planta uma horta.
Faze da tua casa um centro cultural!

Declama poesia, improvisa um monólogo, joga videogame, cartas, xadrez, dados, vê filmes, séries, novelas, desenhos, documentários. Ouve com atenção todas as notícias, as informações sérias que te acrescente como pessoa.

Filtra as notícias falsas.
Enfim, faz da tua casa um local criativo de amor.
 

******* 

Nota 1: O poema costuma ser erroneamente atribuído a Cora Coralina.

Nota 2: O nome da poetisa também aparece como Neneca Parreira. 

Aos velhos de todas as idades

 Nílson Souza

Caros atuais, pretéritos e futuros contemporâneos. Não temais. Eis que vos anuncio uma boa-nova que será alegria para muitos ‒ e talvez motivo de muxoxo para alguns, mas nada trágico para ninguém. Os pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, acabam de descobrir a idade exata em que uma pessoa pode ser considerada velha. 

Sei, alguns indivíduos já nascem velhos, outros fazem o possível para retardar ou eliminar as marcas da idade. E tem também aqueles que preferem pensar que velhos sempre são sempre os outros. Como disse o escritor irlandês Jonathan Swift, autor de As Viagens de Gulliver, todos desejam viver muito tempo, mas ninguém que ser velho. 

Agora não adianta mais a gente tentar se enganar. Segundo recente artigo publicado pela conceituada revista Nature Medicine, os cientistas de Standford analisaram o plasma presente no sangue de 4.263 doadores, entre 18 e 95 anos, e descobriram que uma proteína é o indicador mais confiável da idade cronológica dos seres humanos. Segundo o estudo, o declínio começa aos 34 anos, quando as pessoas passam a apresentar alterações perceptíveis em sua condição física. 

A partir dessa descoberta, eles fizeram uma nova divisão do nosso processo de amadurecimento, que aí vai para saciar logo todas as curiosidades: dos 34 aos 60 anos, estamos na idade adulta; dos 60 aos 78 anos, estamos vivendo a etapa denominada maturidade tardia; e somente dos 78 em diante é que começa a temida velhice.  

Com esse novo conhecimento, deixo aqui o meu recado para jovens e velhos de todas as idades: 

Senhoras e senhores de menos 34 anos, aproveitem o dia ‒ e a noite, evidentemente. Mas sem perder a consciência de que vocês são futuro do mundo, precisam estar lá quando ele chegar. 

Senhoras e senhores da maioridade, aproveitem a potência de seus músculos, a energia do seu sangue e a acuidade de seu cérebro ‒ de preferência, sem negligenciar algumas coisas do espírito e do coração. 

Senhoras e senhores companheiros de maturidade tardia, aproveitem o outono de vossas vidas ‒ e, quando possível, também o verão e a primavera. Mas tomem cuidado com o inverno. Vacinem-se, especialmente contra a solidão e a tristeza, que são mais letais do que a dengue. 

Senhoras e senhores da longevidade alcançada, parabéns! Vocês chegaram lá, aproveitem a liberdade de fazer e dizer o que quiserem. Se julgarem oportuno, podem até confrontar essa tal de velhice com uma provocação bem-humorada, como esta que li outro dia numa camiseta oferecida pela internet: 

‒ Você não manda em mim! Você não é minha neta! 

(Do jornal Zero Hora, março de 2024)

terça-feira, 19 de março de 2024

JOSÉ

 Carlos Drummond de Andrade

Art João Machado* 


E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José? 

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José? 

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio – e agora? 

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora? 

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse…

Mas você não morre,

você é duro, José! 

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde? 

* A estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, nessa foto, ele está acolhendo, em seu ombro amigo, um “José” qualquer morador de rua.

A estátua de Carlos Drummond de Andrade foi instalada em 2002, em comemoração ao centenário do poeta. Localizada na Avenida Atlântica, em frente à Avenida Rainha Elizabeth, em Copacabana, é inspirada em uma foto de Rogério Reis e foi confeccionada por Leo Santana. A peça, feita em bronze, mostra Drummond sentado em um banco, de costas para o mar e olhando para o calçadão. Tanto moradores do Rio quanto turistas fazem questão de sentar ao lado do poeta, seja para fazer uma foto ou para admirar a paisagem. 

P.S. Não temos o crédito de quem tirou essa bela foto. Gostaríamos de dar o devido crédito. Seria o João Machado? 


segunda-feira, 18 de março de 2024

Novos Maridos

 

Tipos de maridos: DVD, DVD-R, CD e VHS 

Para as mulheres que ainda não estão integradas e para os homens se classificarem nas novas tecnologias: 

Sabe o que é um marido DVD? 

► É aquele que se Deita, Vira e Dorme. 

E um marido DVD-R? 

► É aquele que se Deita, Vira, Dorme e Ronca. 

E um marido CD? 

► É aquele que Come e Dorme. 

Moral da história: 

Não há nada como os velhos VHS... Várias Horas de Sexo. 

Só que não se fabricam mais...


A verdadeira história de uma música

 

No livro “Tarso de Castro, editor do Pasquim”, de Sônia Bertol, cuja capa aparece acima, é contada a biografia de Tarso de Castro, jornalista gaúcho e um dos fundadores do Pasquim, jornal alternativo dos a nos 70 e 80. No livro é narrada a história do duelo amoroso entre Tarso de Castro (1941 – 1991) e Roberto Carlos (1941). O primeiro era cabeludo e intelectual; o segundo, cantor e compositor popular. A musa, ninguém sabe quem era, mas a música, esta todo mundo conhece e a canta até hoje, pois é uma das favoritas do Rei. Não há show que ele não a interprete. Pela música, parece, que ele conquistou a moça. Ao ser perguntado se “Detalhes” era sua música preferida, Roberto Carlos respondeu: “Minhas duas músicas preferidas são “Detalhes” e “Eu te amo tanto”. 

Detalhes 

Composição: Roberto Carlos e Erasmo Carlos 

Não adianta nem tentar me esquecer
durante muito tempo em sua vida eu vou viver.
Detalhes tão pequenos de nós dois
são coisas muito grandes pra esquecer
e a toda hora vão estar presentes,
você vai ver.

Se um outro cabeludo aparecer na sua rua,
e isso lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua.
O ronco barulhento do seu carro,
a velha calça desbotada ou coisa assim,
imediatamente você vai lembrar de mim.

Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido,
palavras de amor como eu falei, mas, eu duvido,
duvido que ele tenha tanto amor,
e até os erros do meu português ruim
e nessa hora você vai lembrar de mim.

A noite envolvida no silêncio do seu quarto,
antes de dormir você procura o meu retrato,
mas na moldura não sou eu quem lhe sorri
mas você vê o meu sorriso mesmo assim
e tudo isso vai fazer você lembrar de mim.

Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada,
não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada,
pensando ter amor nesse momento, 
desesperada, você tenta até o fim e até nesse momento você vai lembrar de mim.

Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada,
do tempo que transforma todo amor em quase nada,
mas quase também é mais um detalhe,
um grande amor não vai morrer assim,
por isso, de vez em quando você vai...
vai lembrar de mim.

Não adianta nem tentar me esquecer.
durante muito e muito tempo em sua vida eu vou viver.

Como se educa sem violência

 Dr. Arun Manilal Gandhi

O Dr. Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi e fundador do MK Gandhi Institute, contou a seguinte história  sobre a vida sem violência, na forma da habilidade de seus pais, em uma palestra proferida em junho de 2002 na Universidade de Porto Rico. 

“Eu tinha 16 anos e vivia com meus pais, na instituição que meu avô havia fundado, e que ficava a 18 milhas da cidade de Durban, na África do Sul. Vivíamos no interior, em meio aos canaviais, e não tínhamos vizinhos, por isso minhas irmãs e eu sempre ficávamos entusiasmados com a possibilidade de ir até a cidade para visitar os amigos ou ir ao cinema. 

Certo dia, meu pai pediu-me que o levasse até a cidade, onde participaria de uma conferência durante o dia todo. Eu fiquei radiante com esta oportunidade. Como íamos até a cidade, minha mãe me deu uma lista de coisas que precisava do supermercado e, como passaríamos o dia todo, meu pai me pediu que tratasse de alguns assuntos pendentes, como levar o carro à oficina. 

Quando me despedi de meu pai ele me disse:

- Nos vemos aqui, às 17 horas, e voltaremos para casa juntos. 

Depois de cumprir todas as tarefas, fui até o cinema mais próximo. Distraí-me tanto com o filme (um filme duplo de John Wayne) que esqueci da hora. Quando me dei conta eram 17h30min. Corri até a oficina, peguei o carro e apressei-me a buscar meu pai. Eram quase 18 horas. Ele me perguntou ansioso: 

- Por que chegou tão tarde? 

Eu me sentia mal pelo ocorrido, e não tive coragem de dizer que estava vendo um filme de John Wayne. Então, lhe disse que o carro não ficara pronto, e que tivera que esperar. O que eu não sabia era que ele já havia dado um telefonema para a oficina. Ao perceber que eu estava mentindo, disse-me: 

- Algo não está certo no modo como o tenho criado, porque você não teve a coragem de me dizer a verdade. Vou refletir sobre o que fiz de errado a você. Caminharei as 18 milhas até nossa casa para pensar sobre isso. 

Assim, vestido em suas melhores roupas e calçando sapatos elegantes, começou a caminhar para casa pela estrada de terra sem iluminação. Não pude deixá-lo sozinho... guiei por 5 horas e meia atrás dele... vendo meu pai sofrer por causa de uma mentira estúpida que eu havia dito. Decidi ali mesmo que nunca mais mentiria. 

Muitas vezes me lembro deste episódio e penso: “Se ele tivesse me castigado da maneira como nós castigamos nossos filhos, será que teria aprendido a lição? Não, não creio. Teria sofrido o castigo e continuaria fazendo o mesmo. Mas esta ação não-violenta foi tão forte que ficou impressa na memória como se fosse ontem.”

Este é o poder da vida sem violência.


O Homem é como uma casa.

 Aparício Torelly*


Tal e qual. Há casas que são uma fachada. Atrás de um belo e suntuoso frontispício, escondem um interior e uns fundos miseráveis. Em compensação, há homens de aparência rude, de mãos calejadas e rostos cheios de sulcos que, no entanto, ao se lhes penetrar no íntimo, revelam uma alma hospitaleira, repleta de bondade sincera e de celestial tranquilidade. 

Há uns velhotes, baixinhos e atarracados, com o cabelo virado nas pontas que lembram essas mansardas coloniais de telhado de beira, com a sala de visita atulhada de objetos antigos, alguns muito bonitos e bem trabalhados, mas que atualmente, não têm a menor utilidade. Por exemplo: um castiçal de prata para velas de sebo, que ainda não tomou conhecimento da existência do mercado das lâmpadas fluorescentes. 

Dois irmãos gêmeos são dois prédios iguais, construídos pelo mesmo arquiteto, com o mesmo material. Um cidadão com mais de dois metros de altura é um arranha-céu, sem elevador. Um homem doente é uma casa avariada. Um homem com muitas doenças é um hospital. O barbeiro é uma espécie de jardineiro, encarregado de podar as vegetações que nascem na frente da casa. Há barbas piores do que tiririca ou carrapicho rasteiro. 

Um homem, uma casa. Alguns senhores do interior, parados na avenida, uma aldeia. Um senhor que tem algumas amizades e as explora familiarmente, é uma casa de pensão. Um cavalheiro muito amável e muito cortês, mas que assalta sem piedade as pessoas que a ele recorrem, é um hotel de luxo. Os irmãos siameses são dois prédios contíguos. Um grão-fino, de flor no peito, é um bangalô, muito bem arranjadinho, com jardim na frente, mas hipotecado até os alicerces. 

Há homens palácios. Há homens taperas. Há homens residenciais. O tipo mais simpático, porém, é aquele que nos paga o almoço regado a finos líquidos. Este é o armazém de secos e molhados. 

* Barão de Itararé

domingo, 17 de março de 2024

Carta de uma idosa

  trancada num lar de idosos

Tenho 82 anos, 4 filhos, 11 netos, 2 bisnetos e um quarto, onde moro atualmente,  de 12 metros quadrados. 

Já não tenho mais a minha casa, nem as minhas coisas amadas, mas tenho quem arruma o meu quarto, quem me faça de comer, quem me faça a cama, quem me controla a pressão e me pesa. 

Não tenho mais as risadas dos meus netos, não posso mais vê-los crescer, abraçar e brigar; alguns deles visitam-me a cada 15 dias; outros a cada três ou quatro meses; outros, nunca. 

Eu não faço mais bolos ou ovos recheados e nem rolos de carne moída, nem ponto em cruz. 

Ainda tenho passatempos para fazer e o sudoku que me entretém um pouco. 

Não sei quanto tempo me resta, mas preciso de me acostumar com esta solidão; faço terapia ocupacional e ajudo no que posso a quem está pior do que eu, embora não queira me apegar muito: pois eles desaparecem frequentemente... 

Dizem que a vida é cada vez mais longa. Por quê? 

Quando estou sozinha, posso olhar para as fotos da minha família e para algumas memórias que trouxe de casa. 

E isso é tudo. 

Espero que as próximas gerações entendam que a família se constrói para ter um amanhã (com os filhos) e que retribuam na mesma medida aos pais com o mesmo tempo que eles nos presentearam para nos educar e criar. 

(Autoria desconhecida)

A procura de cada um...

 

Era uma vez o Fogo, a Fumaça, a Água e a Confiança. 

Um dia, eles entraram em uma floresta escura, e o Fogo disse: 

‒ Se eu me perder, procurem a Fumaça, pois onde há Fumaça, há Fogo! 

A Água disse: 

‒ Se eu me perder, me procurem na umidade, pois onde há umidade, há Água! 

Então. A Confiança disse: 

‒ Se eu me perder não me procurem, pois uma vez perdida, nunca mais me encontrarão.

sábado, 16 de março de 2024

Uma canção para Elis

 (17 de março de 1945 ‒ 19 de janeiro de 1982)

Em homenagem ao aniversário de Elis Regina: 17 de março. 

“Quando ela canta,

penso num pássaro.

Não num pássaro cantando,

mas num pássaro em pleno voo.” 

Ferreira Gullar


Elis, tua canção

sempre me diz:

importa ser verdadeiro

muito mais que ser feliz.


Havia pássaros e sinos

em tua voz cristalina.

Bravos gestos de guerreira,

frágil corpo de menina.


Ainda te escuto nas ruas

pelas tardes de neblina.

A tua voz continua,

oh, minha estrela sulina.


Oh, madrinha dos aflitos,

oh, bizarra bailarina,

agora brilhas mais longe,

mas tua voz me ilumina.

 

Tua voz era a tua alma,

em teu olhar, melodia.

Verso e canção em um gesto

todo teu corpo irradia.

 

Veludo, pétala e faca,

a tua voz não termina.

Cantar é abrir viveiros,

oh, minha estrela sulina. 

Luz Coronel 

(Correio do Povo, 17 de março de 2024)