(Noutro baile será pior)
Estávamos atrasados, tínhamos perdido
um tempo enorme, aquela tarde. Galopando uns potros. Éramos três gaúchos
acostumados na dura lida com gado arisco e cavalhada chucra. Idade: beirava 21
anos. Estávamos prontos a dar peleia em defesa própria ou para salvaguardar
algum indefeso.
Era lusco-fusco. Depois de havermos
tomado um banho na sanga, já com roupas domingueiras montados em nossos cavalos
de passeio rumávamos para um baile. Nos repechos íamos ao tranco, nos lançantes
a trote largo e no plano metíamos galope.
Havia pressa, pois, o baile era com
janta. Paga-se entrada, mas teria assado, leitão e café com rosquinhas.
Ao chegarmos ao local do baile, logo
nos apresentamos ao dono da casa. Em seguida fomos convidados a desencilhar e
soltar nossos cavalos no potreiro. Os arreios emalados e depositados em um
quarto no galpão. O pessoal estava jantando ao ar livre, embaixo de uma ramada
improvisada, com faróis dependurados nos esteios, que iluminavam com
deficiência as compridos mesas ladeadas por compridos bancos. As risadas,
conversa e gritos festivos da mocidade ali reunida, eram abafados pelos acordes
de uma gaita que tocava uma rancheira. Logo nos entreveramos com aquela gente,
tomando assento à mesa. Depois da janta, os bancos foram transportados para a
sala, e colocados em fila e junto à parede onde teria lugar a dança.
Pelos moços, ficamos sabendo que um
tal de Ica, brigado com a noiva, havia sentenciado que naquele baile dançaria
com a moça, quer queira quer não. Soubemos, também, que o tal gaúcho era
quebra; já havia esbofeteado uma moça por não querer dançar. Todo mundo
comentava, com receio, o perigo se o maleva aparecesse e a moça o rejeitasse.
O baile iniciou-se com grande
entusiasmo. Lá pelas tantas apareceu o temido gaúcho. Assomou no limiar da
porta de chapéu na mão. Cumprimentou a todos com um aceno de mão e braço e, por
sua própria conta, tomou acento na sala. O silêncio logo tomou conta daquela
gente alegre e feliz. O gaiteiro fez uma pausa, fechando a gaita. O ambiente
parecia tomar jeito de velório; ninguém falava, só trocavam olhares. O intruso
de vez em vez passava a mão no bigode e olhava para a dita moça. Esta, tímida e
insegura de si mesma, não resistindo àquela situação, levantou-se com propósito
de abandonar a sala. Mas, rápido, um dos nossos companheiros, conhecendo a
intenção da moça, embargou-lhe os passos, solicitando a honra de dançar a
primeira marca. E ali ficou, de pé, ao lado da trêmula jovem, tal qual um
guardião. Ou melhor ainda, como um macho pronto a defender uma fêmea.
O gaúcho maleva não gostou daquilo.
Viu que a moça tinha um defensor. Porém, em seu rosto, estampou-se um riso de
mofa, de escárnio. Parecia antegozar da fama de sua valentia perante aquela
rapaziada imberbe e indecisa. O ambiente tornou-se de suspensão. Algo iria
acontecer.
O atrevido gaúcho levantou-se, e, com
andar macio, gingando os ombros, dirigiu-se para o gaiteiro pedindo que tocasse
alguma coisa, no que logo foi obedecido.
No caminhar notamos que o gaúcho
trazia oculta, por dentro da bombacha, ao correr da perna, uma adaga.
Assim que o gaiteiro floreou uma marca,
o gaúcho dirigiu-se para o par que se aprontava para dançar, e disse em tom
imperativo:
– Cavalheiro, esta moça é
comprometida.
Apesar do susto estampado no lindo
rosto da moça, esta, ao sentir-se segura sob o olhar firme de seu par,
respondeu:
‒ Já estive, mas agora sou livre.
Ao que contestou o gaúcho entre
dentes:
– É o que veremos.
Nós que já estávamos de olho naquela
cena, sentimos que era hora de agir.
Rápido nos acercamos do trio em
difícil situação, e colocando-nos um de cada lado do maleva, lhe falamos baixo
no ouvido:
– Amigo, vamos lá fora que temos algo
para te fazer mudar de palpite.
E sem dar trégua, o tiramos calçado,
como capão para consumo, porta a fora, sob a admiração e aprovação de todos.
Lá fora o gaúcho virou bicho e quis
dar rodeio. Boleou a anca e puxou pela adaga.
Mas o desgraçado foi sem sorte, nós
éramos três...
No final tivemos de ajudá-lo a montar
a cavalo e sair estrada afora com esta advertência:
– Se não te portares direito, em outro
baile será pior. Terás a sorte do porco que já foi cachaço.
*****
(Do Almanaque do
Correio do Povo de 1977)
Glossário:
Chucra: bravia,
gado não domesticado, animal ainda não domado.
Repechos:
encostas, aclives, subidas.
Lançantes:
declives fortes num cerro ou numa coxilha.
Entreveramos:
misturamos.
Emalar: enrolar
para guardar alguma coisa.
Quebra: diz-se do
cavalo caborteiro e perigoso, pessoa sempre pronta para uma briga.
Maleva: genioso,
rancoroso.
Marca: nome que se dá a qualquer música tocada nos bailes de
campanha, geralmente por gaiteiro isolado.
Adaga: faca
comprida e fina tipo punhal de dois gumes.
Capão: cordeiro
castrado.