segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Como vencer um debate político



Macetes para um candidato vencer,
no debate e na propaganda, uma eleição:

→ Quanto ao gestual, o candidato, ao falar na TV, deverá usar o recurso do “martelinho”. O martelinho é aquele gesto de punho cerrado, e bater na mesa com força para reforçar o discurso. A intenção e transmitir firmeza e determinação.

→ Outro recurso é ficar com os olhos fixos na tela ao expor as suas metas. Os olhos permanecem tão fixo que até parece que o candidato fala de improviso, tudo com a ajuda do teleprompter.

→ Os filmes a serem exibidos na TV, durante a campanha eleitoral, deverão ter campos floridos, extasiantes horizontes, gente sorridente. A música de fundo será idílica, e pode terminar triunfante com a estoca final de uma ária de Puccini.

→ As pessoas serão entrevistadas nas ruas, que serão centenas, mas na edição só serão colocadas as que falarem bem do candidato. Na edição final, os transeuntes não poupam louvações ao candidato. Como esse candidato é querido! É só sair à rua, uma câmera na mão e um microfone na outra, e chovem os testemunhos das suas boas qualidades (Os que falarem mal serão deletados).

→ Os filmes de propaganda na TV também exibirão crianças correndo alegres e soltas, jovens casais enlaçando-se sorridentes, mulheres grávidas contemplando confiantes a própria barriga. Para quem não sabe, fique sabendo que tanto as crianças como os jovens e as mulheres grávidas representam o futuro. No caso, o futuro de paz e felicidade que nos garantirá a eleição do nosso candidato.

→ Nos debates de TV, sempre que for atalhado por uma pergunta sobre um assunto polêmico. O candidato deverá contornar o assunto e deixar, mudando o rumo da conversa, o tempo passar.

→ Cabelo bem cortado, terno de marca famosa, gravata de grife com tudo combinando, conta ponto para o candidato. O olhar fixo no olho da câmera, suor controlado, marqueteiros de plantão sempre dando palpites sobre o ponto fraco do oponente, ajudam muito num debate. O Collor fez isso e ganhou a eleição. Ele, no fundo, sabia que era um engodo, mas sabia também que havia um monte de ingênuos que só votaria nele por medo dos outros candidatos. Gente que não tem nenhuma ideologia, só medo e preconceito. Então, deu no que deu...

→ Na próxima eleição, vai acontecer a mesma coisa. Os politizados já têm “o seu candidato”. Os outros só esperam ver quem serão os adversários. Não importa quem seja. Eles votam até no capeta e no Bin Ladem. Eles sempre são contra aquilo que o povo gosta e acredita, pois os seus candidatos já estão determinados pelos seus inconscientes coletivos, que já vem imposto de cima para baixo. Se é que me entendem...

Adendo Final:

→ O povo, essa identidade abstrata, que afinal somos todos nós: Trabalhadores, donas-de-casa, estudantes, intelectuais, civis, militares, jovens, velhos, enfim, qualquer pessoa que tenha um título de eleitor, é quem vai determinar o futuro de nossa nação. O candidato, que ganhar a eleição, deverá ter consciência da responsabilidade que caiará sobre os seus ombros. O presidente que vai sair sabe que a história irá desvendar e divulgar tudo de bom e de ruim do que ele fez durante o(s) ano(s) de seu(s) mandato(s).

→ Eu, particularmente, peço a Deus que o futuro presidente dê continuidade a tudo de bom que os presidentes anteriores fizeram por este país, que é o país que todos nós amamos do fundo de nossos corações.

(De um texto do Roberto Pompeu de Toledo, da Veja,
com leves modificações.) 


O Trote

(Uma discussão antiga)


No dia 28 de março de 1910 não houve edição do Correio do Povo. Na época, o jornal não circulava às segundas-feiras. Era a negação absoluta do mais comezinho princípio de delicadeza; era indiscutivelmente a corporificação da brutalidade; era sem dúvida, uma prática selvagem e desumana. O estudante fazia o seu curso secundário, distinguia-se em todo ele, e não só pelo aproveitamento demonstrado perante os mestres, como pela reconhecida capacidade muitas vezes posta em evidência fora dos bancos escolares. Conquistava, desse modo, um título legítimo que lhe dava ingresso em qualquer estabelecimento de ensino superior. E resolvia entrar para a academia, acastelando na mente esperanças risonhas e sonhando com uma vida amena e doce.

Violência e decepção

Uma vez dentro da faculdade, porém, tinha a mais triste, a mais completa, a mais cruel desilusão! Nem bem penetrava nos umbrais do templo, que ingenuamente imaginara sacrossanto e augusto, e já lá via escrita a giz ou a carvão, numa parede, a sentença que o condenava a priori, sem apelação nem agravo.

“Nem tudo que luz é ouro,
Nem todo sopapo é murro:
Nem todo burro é calouro,
Mas todo o calouro é burro.”

Se fosse só isso, se se tratasse apenas de uma infração dos preceitos de urbanidade, não seria nada.

Mas não ficava nisso. O novato, ao dirigir-se para a aula, recebia logo à porta da sala uma surriada de impropérios, acompanhados de pescoções, de pontapés, de berros estridentes e de assovios ensurdecedores. E, quando se retirava, confundido ainda pelos textos complicados do Digesto, embaraçado pelo latim das Institutas ou emaranhado em problemas altamente filosóficos, como o da imoralidade da alma, era o infeliz agarrado a muque e a laço, violentamente por alguns impiedosos veteranos, que o transformavam em um verdadeiro arlequim, pintando-lhe o rosto de preto ou vermelho, virando-lhe a roupa pelo avesso, cobrindo-lhe a cabeça com uma carapuça de papel ordinário e, por cima de tudo, obrigando-o a triangular pela cidade montado numa égua magra, ou sentado no varal de uma carroça, quando, porventura, a sua força física não lhe permitia puxar o veículo pelas ruas... Foi assim... Foi assim antigamente!

1878: A resistência dos calouros

A 9 de setembro de 1878, os primeiranistas de direito, após um incidente suscitado dias antes, entre um calouro e um veterano repeliram energicamente o ataque de que eram alvo, resultado daí um conflito muito sério que teve as maiores consequências. Nessa ocasião, cinquenta praças da guarda urbana, sob o comando de um alferes energúmeno, invadiram o saguão da Faculdade, espaldeirando a torto e a direito os acadêmicos. O espírito de classe, então, ferveu em todos os cérebros, e, desde o primeiro até o quinto ano, inclusive os preparatorianos, estudantes unidos em um só bloco, congraçados pelas circunstâncias especialíssimas do momento, expulsaram os imprudentes soldados que se haviam imiscuído nos seus negócios internos. Salientou-se o bacharelando José Gomes Pinheiro Machado, que a esse tempo não era nem senador, nem pai da pátria, mas que assumiu a vanguarda do éxercito improvisado de estudantes (cerca de 400 rapazes), dirigindo o combate com a tática de um militar experimentado no ofício...

O trote é abolido

No dia seguinte ao do conflito, às 7 horas da noite, no pátio do colégio (hoje largo do Palácio), realizou-se um meeting, perante mais de 300 pessoas, discursando o quartanista de direito, José Antonio Pedreira de Magalhães Castro. No correr da eletrizante alocução, o jovem tribuno republicano concitou os estudantes de todas as categorias a reunirem-se em torno da bandeira do Hino Acadêmico, para cimentar para sempre a coesão e harmonia da classe, e acabou proclamando a abolição do trote! A multidão prorrompeu em entusiásticos aplausos. E Magalhães Castro acrescentou: - “A lei está promulgada pela soberania acadêmica e popular. Nunca mais as vaias na Academia!”.

Em 10 de setembro de 1878 a Província de São Paulo (atualmente Estado) dizia: “O que é muito para desejar agora é que morra por uma vez em nossas academias o desagradável legado das vaias de Coimbra.”

E a herança que nos veio da universidade portuguesa morreu, de fato, desde essa data. Eis como, há mais de trinta anos se baniu da Faculdade essa prática deprimente e condenável.

O ressurgimento

Em seguida, surgiu o ensino livre, consubstanciado pelo conselheiro Leôncio de Carvalho, ministro do império, no decreto de 17 de abril de 1879. Não havendo mais frequência obrigatória, o trote, que já estava extinto por iniciativa espontânea da classe, desapareceu inteiramente do nosso meio, por espaço de dezesseis anos, dos quais dez no regime decaído, de sorte que, quando se proclamou a República, já se achava a academia expurgada de tal usança, bárbara e funesta.

Mas, por decreto n 314, de 30 de outubro de 1895, o ministro Gonçalves Ferreira, no governo Prudente de Moraes, restabeleceu a obrigatoriedade da frequência às aulas, e com ela foi também restabelecendo aos poucos o trote pelo contato dos alunos que se encontravam quotidianamente por um fenômeno de reversão, que os arrastou para os domínios do passado. E renasceu o espantalho - religião canibalesca - com o seu depravado culto externo, sua pragmática e sua praxe detestáveis. Em 1909, as vaias reboavam de novo pelas arcadas do velho convento de São Francisco, e os primeiranistas eram atropelados a todo o instante, perseguidos a cada momento, maltratados de minuto a minuto.

Correio do Povo, 05/05/1910.

O retorno dos trotes

Lemos na Plateia, da capital de São Paulo:


“A imprensa da capital, na sua unanimidade, ao se reabrirem, há dias, as aulas da Faculdade, comemorou a abolição do trote em nossos estabelecimentos de ensino superior. Assim, na Academia de Direito e na Escola de Farmácia, ao em vez das costumadas vaias e surriadas, os calouros foram acolhidos festivamente por parte de uma minoria de acadêmicos, que, desde o ano passado, tinham tomado o compromisso de deixar em sossego os pobres primeiranistas.

Mas a tradição é uma coisa que se não destrói de um dia para outro. O certo é que na faculdade, o ânimo folgazão da maioria dos estudantes, manteve o precedente. As vaias, as peruadas sucedem-se diariamente, cada vez com mais furor.”

Correio do Povo, 12/5/1910.


Manuelzão



Nascido em 1904, em Dom Silvério, cidade na Zona da Mata mineira, Manuel Nardi passou quase todos os seus 93 anos no sertão mineiro. Faleceu em 1998.

Manuelzão, um dos companheiros de Guimarães Rosa nas andanças pelo sertão, foi imortalizado pela obra do escritor.


Manuelzão e Guimarães Rosa

Mané, Manezinho, Nezinho, Manelão. Mesmo quem nunca leu a obra de Guimarães Rosa provavelmente já ouviu falar num vaqueiro que tinha diversos apelidos durante a vida, mas ficou conhecido mesmo pelo nome de seu personagem no livro Corpo de Baile: Manuelzão. Depois de virar um ícone literário, Manuel Nardi (seu nome de batismo) nunca mais foi o mesmo. Passou a se confundir com o homem descrito no conto de Rosa e adotou o Manuelzão que o imortalizou.

O encontro entre Manuel Nardi e o escritor João Guimarães Rosa aconteceu quando o vaqueiro tinha já 45 anos, na histórica comitiva que cavalgou 240 quilômetros em 10 dias, da Fazenda Sirga, na cidade de Três Marias, à Fazenda São Francisco, em Araçaí, Minas Gerais. Dessa aventura nasceu a obra-prima de Rosa: Grande Sertão: Veredas. Foram, ao todo, 19 dias de convivência com o escritor, incluindo a preparação para a viagem. No grupo havia, além de Rosa, com seus caderninhos de anotações pendurados no pescoço, sete vaqueiros – hoje todos mortos – e 198 cabeças de gado.

Manuelzão foi o único dos colegas que, no decorrer e depois da viagem, deixou-se gravar e contou boa parte de seus causos ao escritor. Em parte, fez isso porque sempre sonhou em ver sua figura eternizada.

Manuelzão dizia e contava um caso engatando no outro. E era aquela felicidade de fruição de boa água límpida, jorrando dadivosa da fonte telúrica das minas. O velho não se cansava, abundante em informes e vivências. Não se repetia e parecia inexaurível. Fora ele quem comandara os tropeiros que, partindo no dia l9 de maio de l952 da Fazenda Sirga, nas cercanias de Três Marias, junto ao velho Chico, conduziram 360 bois por quarenta léguas – duzentos e quarenta quilômetros – abaixo, rumo a Araçaí, distrito de Sete Lagoas, num trajeto de onze dias.

Seus companheiros eram Zito, que faleceu há pouco, Bindóia, Gregório, Santana, Joaquim, Sebastião, Aquiles, Tião Leite e um rapazinho do qual não se fala. Com eles ia um certo “dotô” da cidade do Rio de Janeiro, almofadinha, bisbilhoteiro e anotador de tudo quanto era coisa e variedade. Logo este se despiu do tratamento de doutor, e disse ser Rosa, nascido ali, no Cordisburgo. Virou o João Rosa, garbosamente montado na besta Balalaika, para Manuelzão e seus companheiros de travessia.

Manuel Nardi era uma “espécie de gerente de uma microempresa de transporte”, tropeiro, num país ainda rural, mas já em vias de aspirar a uma esperançosa ascensão urbana. Manuelzão e seus associados se interpuseram nessa transição: do sertão rústico, local, rural, para o sertão abrangente da literatura que descreve e batiza o mundo moderno, citadino, universal.

Pelas artes da obra de Guimarães Rosa, o vaqueiro mineiro assumiu a posição de chefe-de-fila, ele, com seu histrionismo caipira bem balanceado, sério composto, como legítimo homem de Rosa. Sua inteligência prática de sertanejo curtido, observador e experimentador das circunstâncias, refletia e raciocinava sobre tudo quanto a vida de vaqueiro lhe propiciara.

Manuelzão tornou-se o companheiro exemplar, redivivo, do escritor João Guimarães Rosa. Tantos, como eu - todos aqueles que, hoje, percebem a precisão e a valência da obra de Joãozito - procuravam avidamente encontrar um brilho de luz do João – Graça de Deus – na figura animada do Manuel – Deus conosco. Essa luz ele tinha. Ele sabia fazer farol e ser o brilho vidrilho de luz cintilante que alumiava o tosco feio, indiferenciado, maculado do borrado sujo de nossos cotidianos sem graça e sem finalidade.

Ouvi-lo, estar em presença de Manuelzão, era um deleite, um extenso delém, tal como aquele que Riobaldo sentia, atraído e encantado, quando estava perto de Diadorim... Foi assim que auferi os influxos de sua pessoa e de sua presença. Silenciosa e discretamente, armei-me cavaleiro fiel da Ordem de Manuelzão. Minha sincera e expressiva homenagem foi colocar-me como escudeiro e vassalo, sujeito às emanações da pura sabedoria proveniente dos fundos da minha terra mineira que sua hierática figura evoca. Depois, foi só procurar na bíblia escrita por João Guimarães Rosa uma frase a propósito da intenção da foto. Sempre há.

Manuel Nardi era o repositório das façanhas e das travessias dos homens pelo sertão, memória viva de um tempo e de lugares que se vêm transformando.

- O sertão? O senhor vá lá, talvez ainda encontre alguma coisa...


Manuelzão no ano que se fez amigo de Guimarães Rosa,
em foto de Maureen Bisilliat.

Manuel Nardi, falecido em 1998, aos 93 anos. Ele é um dos mais conhecidos personagens dos livros do escritor João Guimarães Rosa, o mais famoso contador das histórias dos sertões mineiros - por onde o Rio das Velhas passa - e um dos primeiros a reconhecer a importância dos rios para a sobrevivência do homem.

Daqueles dez dias pelo sertão de Minas, resultariam dois de seus livros mais importantes: Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, livro de contos e novelas que depois foi dividido em três volumes - Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.

* Na caixa de DVDs com toda minissérie “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, gravada em 1985, na primeira cena, do primeiro capítulo, quem faz a primeira aparição, caminhando num campo, com a voz dublada, é o próprio Manuelzão.



Guimarães Rosa por Loredano



domingo, 30 de outubro de 2016

Tire o S da crise!



Por Helena Gerenstadt

A frase que me dá muita inspiração sobre momentos difíceis vem do homem que construiu a empresa que hoje tem o maior faturamento do mundo, Sam Walton, fundador da rede Wal-Mart:

“Ouvi muito falar de uma tal de recessão, fiz uma reunião com minha diretoria e resolvemos não participar!”

Se alguém ficar teimando em falar de crise mande “plantar batatas”. Crise em nosso país não é uma piada de salão, é uma piada de mau gosto. Diga não a crise. Crie!

Assim como um diretor de cinema, mudando o ângulo da câmera, o volume e o tipo de música, transformou todo o efeito que o filme possa ter sobre a plateia, você também pode mudar o efeito que qualquer experiência na vida possa ter sobre você.

Amar a vida, amar o que faz, eis aí a chave do sucesso.

Você conhece alguma pessoa que alcançou grande sucesso fazendo o que odeia?

Você pode não pintar tão bem como Picasso... Mas pode fazer o melhor para encontrar um trabalho que o revigore e o faça feliz.

Resultado é apenas consequência.

William Shakespeare disse:

“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que sempre poderíamos ganhar, por medo de tentar”.

A crença no fracasso, na crise, é uma maneira de envenenar a mente. Concentre-se na solução, não no problema.

Não coloque o seu foco no “defeito”.

Se você acredita em sucesso, ficará fortalecido para consegui-lo... Se acredita em fracasso, sua crença o levará para este caminho. A escolha é sua!

A crise é igual à droga. A falsa “magia” das drogas reside dentro da mente, nas drogas.

O Rei Salomão disse:

“O homem, assim como ele pensa, assim ele é”.

O poeta romano Publius Vergilius Maro, ou simplesmente, Virgílio, disse:

“Eles podem porque pensam que podem”.

Você não vai conseguir a casa dos seus sonhos se achar que não pode.

Lembre-se, toda experiência humana, tudo que já disse, viu, ouviu, sentiu, cheirou, degustou...

Tudo está arquivado em seu cérebro.

Busque melhorar... O conhecimento é uma das grandes armas para quebrar as algemas do limite.

Diga não a crise! Tire o “S” da Crise

Crie!

Pense nisso, um forte abraço e esteja com Deus!

Carpano, um fazendeiro das antigas.



Desenho de Marcelo Lopes de Lopes

Depois de uma reunião de ruralistas em Porto Alegre, o repórter entrevistou Carpano. Por razões não reveladas, a matéria, afinal, não foi publicada. Era esta:

P – Como o senhor descreveria a situação atual da pecuária rio-grandense?

R – Mais maltratada que sovaco de aleijado. Se merda fosse manteiga, le garanto que nenhum de nós estaria comendo pão seco.

P – E como vê o senhor o futuro de nosso Estado?

R – Negro como pensamento de china desprezada, feio que nem galope de vaca e mais difícil que nadar de poncho.

P – E tem solução para o problema?

R – Pues, claro. Só não tem jeito mulher falsa, cachorro puto e fantasma. Além da morte, é claro.

P – O que acha da moratória aos ruralistas?

R – Inevitável como tesão de mijo.

P – E o governo federal?

R – Apesar de mais informado que gerente de funerária, incomoda como pulga em fundilho.

P – E os contatos com os altos escalões, como foram?

R – Uma charla da classe conservadora com a classe conversadora...

P – Particularmente, como o senhor se sente?

R – Quente que nem frigideira sem cabo. Em resumo: puto da cara!

  (Do livro “Anedotário da Rua da Praia 3”
de Renato Maciel de Sá Júnior)


Um texto sobre Luis Fernando Veríssimo


O dia em que descobri que Luis Fernando Veríssimo é um mentiroso


Na Copa da Espanha, em 1982, um grupo formidável jantava quase diariamente em Sevilha, depois em Barcelona, depois em Madri. Luis Fernando Veríssimo, Ruy Carlos Ostermann, Sérgio Cabral, o pai, João Ubaldo Ribeiro, Nelson Motta e eu. Com defecções e acréscimos, as noitadas se repetiram em Guadalajara, no México, quatro anos depois.

João Saldanha, por exemplo, às vezes dava o ar de sua graça, assim como o impagável Paulo Sant’Ana, de Zero Hora. Eram jantares intermináveis e inesquecíveis. Eu ficava rouco de tanto ouvir, de tanto rir, de tanto aprender. Cada um era melhor contador de casos do que o outro, e invariavelmente, ao fim dos jantares, Veríssimo saía de seu mutismo e nos deliciava com suas histórias.

Uma bela noite em Guadalajara, Veríssimo e eu nos encontramos no saguão do hotel, e, depois de muito esperarmos, nos demos conta de que havíamos sido abandonados. Ninguém apareceu. Preocupado com o mutismo do companheiro e com a longa matéria que teria de escrever ao voltar, propus que fôssemos a um restaurante perto do hotel, jogo rápido, a pé.

Veríssimo também tinha de escrever sua coluna dominical e topou na hora. Lá fomos nós, calados, como convinha. Fui pensando em como começar uma conversa e, depois de pedir o jantar, perguntei, pedindo que fosse bem honesto, se ele acreditava no chavão que nos ensinaram desde criança, de que o trabalho é quase sempre 90% de transpiração e apenas 10% de inspiração (coisa que, no caso dele, não me parecia verdade mesmo!).

Monossilabicamente, Veríssimo respondeu que sim, que tinha de se esforçar muito para escrever, que sofria no ato de redigir. Jantamos praticamente em silêncio. Nos despedimos nas portas de nossos quartos, parede a parede. Pus papel na máquina de escrever e fiquei contemplando aquele branco angustiante – embora as laudas nunca tenham sido propriamente brancas, mas, sim, amareladas.

Eis que, incontinenti, ouço um disparar de teclado no quarto ao lado. Era mesmo como se fosse uma metralhadora. Foi coisa de dez minutos ininterruptos, ao cabo dos quais pude ouvir o barulho de uma torneira aberta e da escova de dentes batida na pia. Dei um tempinho, bati na porta do quarto de Veríssimo, e ele a abriu, já de pijama.

Não tive dúvidas. Chamei-o de mentiroso e prometi que ele teria muita dificuldade para dormir, porque eu batucaria na máquina até umas quatro da matina. Ele tentou se desculpar, disse que não tinha mentido nada, que na verdade ficava tão calado porque vivia escrevendo mentalmente, razão pela qual, quando se sentava diante da máquina, o texto fluía com aparente facilidade.

Eu não acredito. E até hoje o tenho na conta de mentiroso. Genial mentiroso.

Escrevi até as cinco.

(Extraído do livro “Meninos, eu vi”, de Juca Kfouri, editoras DBA/Lance)



sábado, 29 de outubro de 2016

Censura a uma música


Documento mostra censura da letra de “Tiro ao Álvaro”, 
de Adoniram Barbosa.


Em 1973, cinco canções do consagrado compositor e cantor Adoniram Barbosa foram vetadas pela censura, inclusive as que já haviam sido gravadas na década de 50. Os pareceres são assinados pela censora Eugênia Costa Rodrigues.

Um exemplo eloquente foi a censura da letra de “Tiro ao Álvaro. Adoniran Barbosa usava em suas canções o jeito coloquial de falar dos paulistanos. Não querendo problemas com a censura, em 1973, o artista decidiu lançar um álbum com várias canções já gravadas na década de cinquenta. Inesperadamente, cinco das suas canções foram vetadas, mesmo não sendo inéditas. Diante da linguagem coloquial de “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa – Alocin), que trazia nos seus versos “O Arnesto nos convidou prum samba/ Ele mora no Brás/ Nóis fumo/ Num encontremo ninguém/ Fiquemo cuma baita duma réiva/ Da outra veiz nóis num vai mais (Nóis num semo tatu)”, o censor só liberaria a música se ele regravasse cantando assim: “Ficamos com um baita de uma raiva/ Em outra vez nós não vamos mais (Nós não somos tatus)”. Na letra da música “Tiro ao Álvaro” (Adoniran Barbosa – Osvaldo Molles), a censora faz um círculo nas palavras “tauba”, “revorve” e “artormove”, concluindo que a “falta de gosto impede a liberação da letra”. Para que pudessem ser aprovadas, “Samba do Arnesto” e “Tiro ao Álvaro”, teriam que virar “Samba do Ernesto” e “Tiro ao Alvo”. Tiveram o mesmo destino “Já Fui uma Brasa” (Adoniran Barbosa – Marcos César), “Eu também um dia fui uma brasa. E acendi muita lenha no fogão” e “O Casamento do Moacir” (Adoniran Barbosa – Osvaldo Molles), “A turma da favela convidaram-nos para irmos assistir ao casamento da Gabriela com o Moacir”. “O Casamento do Moacir” foi considerada de “péssimo gosto” pela censora Eugênia Costa Rodrigues. Diante da censura, Adoniran Barbosa não mudou a sua obra, deixou para gravar as músicas mais tarde, quando a burrice já tivesse passado.
  
(Do Blogue Documentos Revelados)

Tiro Ao Álvaro

Adoniran Barbosa / Osvaldo Molles

De tanto levar
frexada do teu olhar,
Meu peito até
Parece sabe o quê?
tauba de tiro ao álvaro
Não tem mais onde furar.

Teu olhar mata mais
Do que bala de carabina,
Que veneno estriquinina,
Que pexeira de baiano.

Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De autormove,
Mata mais
Que bala de revorve.




A linguagem varia ou vareia?



Diariamente nos deparamos com situações de desconforto no uso da língua portuguesa. Isso provoca certas discussões sobre o falar CERTO ou ERRADO! Mas quem determina esses parâmetros? Quais são os interesses de quem determina o que deve ser ou não PADRÃO em nossa língua? Como devemos mesmo usar a língua em benefício próprio? Quais são as formas inadequadas, em que situações e em que momentos devemos usar essa ou aquela forma de expressão linguística? O que podemos considerar certo ou errado? Existe isso? Pra que serve falar certo ou errado? A gente pode falar ou escrever de qualquer jeito? Existe mesmo alguma recomendação ou normatização que deva ser obedecida no uso da língua? Vamos ver um pouco sobre isso a seguir.

É bom sabermos que existem DIVERSIDADES de linguagem e que há explicações fundamentadas para o uso adequado em cada situação envolvendo o falante da Língua Portuguesa. Não há porque condenar ou, até, excluir os falantes de nossa língua que falam fora da Norma Padrão!

Esse caso é semelhante ao do verbo “vadiar” (eu vadio, tu vadias, ele vadia, nós vadiamos, vós vadiais, eles vadiam), cuja variante oral está bem registrada nas vozes de Clara Nunes e Clementina de Jesus no samba “Não vadeia”, de Candeia.

Não vadeia, Clementina,
Fui feita pra vadiar.
Não vadeia, Clementina,
Fui feita pra vadiar, eu vou…
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar, eu vou.
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar, eu vou.

Energia nuclear,
O homem subiu à Lua,
É o que se ouve falar,
Mas a fome continua.
É o progresso, tia Clementina,
Trouxe tanta confusão.
Um litro de gasolina
Por cem gramas de feijão.
Não vadeia, Clementina,
Fui feita pra vadiar.

Não vadeia, Clementina,
Fui feita pra vadiar, eu vou…
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar, eu vou.
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar, eu vou.

Cadê o cantar dos passarinhos,
Ar puro não encontro mais não.
É o preço que o progresso
Paga com a poluição.
O homem é civilizado,
A sociedade é que faz sua imagem,
Mas tem muito diplomado
Que é pior do que selvagem.


(Do ABC da Língua Portuguesa, texto do Prof. Adil Lyra)


Amor em várias versões



Como manter o amor?

Mãe e filha estavam caminhando pela praia. Num certo momento, a filha perguntou:
‒ Como se faz para manter um amor?
A mãe olhou para a filha e respondeu:
‒ Pegue um pouco de areia e feche a mão com força.
A menina pegou a areia e percebeu que quanto mais forte apertava a areia com a mão, mais rapidamente a areia fugia entre os dedos.
‒ Mãe, quanto mais aperto, mais a areia foge da mão!
‒ Eu sei. Agora abra completamente a mão.
A filha abriu a mão, mas veio um vento forte e levou a areia que restava na palma de sua mão.
A jovem riu:
‒ Voou toda. Com a mão aberta também não consegui reter a areia na minha mão!
A mãe também sorriu e disse:
‒ Agora pegue outra vez um pouco de areia e deixe a mão meio aberta como se fosse uma concha: um pouco fechada para protegê-la e um pouco aberta para dar-lhe liberdade sem apertá-la.
A jovem fez como a mãe lhe tinha explicado e viu que a areia não fugia de sua mão, protegida contra o vento.
A mãe olhou para a filha e sorrindo concluiu:
‒ É assim que se faz para manter um amor...

(Autor desconhecido)

 O que é mesmo o amor?

Uma jovem perguntou a um rapaz:
‒ Você me acha bonita?
O rapaz respondeu:
‒ Não.
Mesmo recebendo uma resposta negativa, ela continuou perguntando:
‒ Você gostaria de ficar comigo por toda a eternidade?
‒ Não ‒ respondeu o rapaz.
‒ E se eu fosse embora, você iria chorar? ‒ insistiu a mulher.
E mais uma vez ele respondeu com um não.
Finalmente, a jovem não fez mais perguntas. Ela já tinha ouvido negações demais. Virou as costas para ir embora, com as lágrimas deslizando pelo rosto....
De repente, o rapaz agarrou seu braço e disse:
‒ Você não é bonita... você é linda!
Eu não quero ficar com você para sempre. Eu preciso ficar com você para sempre...
E eu não iria chorar se você fosse embora... eu morreria! ‒ Gostou do jeito de eu dizer “Eu te amo?”.
‒ Sim, mas é pra matar do coração!

(Autor desconhecido)

Amor eterno

Um homem, bastante idoso, procurou uma clínica para um curativo em sua mão ferida, dizendo-se muito apressado porque estava atrasado para um compromisso. Enquanto o tratava, o jovem médico quis saber o motivo da sua pressa, e ele disse que precisava ir a um asilo de velhos tomar o café da manhã com sua mulher, que estava internada lá há bastante tempo. Sua mulher sofria do mal de Alzheimer em estágio bastante avançado.
Enquanto terminava o curativo, o médico perguntou-lhe se ela não ficaria assustada pelo fato de ele estar atrasado.
‒ Não ‒ disse ele ‒ ela já não sabe quem eu sou. Há quase cinco anos ela nem me reconhece...
Intrigado, o médico perguntou-lhe:
‒ Mas, se ela já nem sabe quem o senhor é, por que essa necessidade de estar com ela todas as manhãs?
O velho sorriu, deu uma palmadinha na mão do médico e disse:
‒ É verdade. Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei muito bem quem ela é.
Enquanto o velhinho saía apressado, o jovem médico sorria emocionado e pensava: “Esta é a qualidade de amor que eu gostaria para a minha vida”.

(Autor desconhecido)

 O que é o amor?

Numa sala de aula havia várias crianças. Quando uma delas perguntou à professora:
‒ Professora, o que é o amor?
A professora sentiu que a criança merecia uma resposta à altura da pergunta inteligente que fizera. Como já estava na hora do recreio, pediu para que cada aluno desse uma volta pelo pátio da escola e que trouxesse o que mais despertasse nele o sentimento de amor.
As crianças saíram apressadas e, ao voltarem, a professora disse:
‒ Quero que cada um mostre o que trouxe consigo.
A primeira criança disse:
‒ Eu trouxe esta flor, não é linda?
A segunda criança falou:
‒ Eu trouxe esta borboleta. Veja o colorido de suas asas, vou colocá-la em minha coleção.
A terceira criança completou:
‒ Eu trouxe este filhote de passarinho. Ele havia caído do ninho junto com outro irmão. Não é uma gracinha?
E assim as crianças foram se colocando.
Terminada a exposição, a professora notou que havia uma criança que tinha ficado quieta o tempo todo. Ela estava vermelha de vergonha, pois nada havia trazido. A professora se dirigiu a ela e perguntou:
‒ Meu bem, por que você não trouxe nada?
E a criança, timidamente, respondeu:
‒ Desculpe, professora. Vi a flor e senti o seu perfume, pensei em arrancá-la, mas fiquei com pena de fazê-lo e preferi deixá-la para que seu perfume durasse mais tempo. Vi também a borboleta, muito colorida, voando de flor em flor! Ela parecia tão feliz que não tive coragem de pegá-la. Vi também o passarinho caído entre as folhas, mas ao olhar para o ninho na árvore notei o olhar triste de sua mãe e preferi colocá-lo de volta no ninho. Por isso, professora, não trouxe nada comigo. Só a lembrança do perfume da flor, a sensação de liberdade da borboleta e a gratidão que senti nos olhos da mãe do passarinho!
A professora agradeceu à criança e lhe deu nota máxima, pois ela fora a única que percebera que só podemos trazer o amor no coração.

(Autor desconhecido)

(Do Blogue Mural Joia)




sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Trezentas onças

J. Simões Lopes Neto


Gravura de Edgar Vasques

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.

Parece que foi ontem!... Era fevereiro; eu vinha abombado da troteada.

‒ Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.

Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem capincho!

Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.

E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.

‒ Ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorro brasino, um cusco mui esperto e bom vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.

Por sinal que uma noite...

Mas isso é outra cousa: vamos ao caso.

Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; ‒ parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.

‒ Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as ‒ boas tardes! ‒ ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!

Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar.

E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...

Eu era mui pobre ‒ e ainda hoje, é como vancê sabe... ‒; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...

Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:

‒ Então patrício? Está doente?

‒ Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...

‒ A la fresca!...

‒ É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...

‒ É uma dos diabos, é... mas; não se acoquine, homem!

Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...

Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.

Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.

Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrito pegou a retouçar, numa alegria, ganindo ‒ Deus me perdoe! ‒ que até parecia fala!

E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.

Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.

Amaguei o corpo e, penicando de esporas, toquei a galope largo.

O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.

A estrada estendia-se deserta; à esquerda, os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol; muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como uma despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...

Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.

O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam.

E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois, o lusco-fusco; depois, cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas...

O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as Três-Marias, tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar... lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da minha mãe, do meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo...; Deus o conserve!... sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!...

‒ Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d'água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...

Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:

Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...

Mas que cantar podia eu!...

O zaino respirou forte e sentou e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo.

Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.

Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo não, que não entra em peito de gaúcho!

Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vagalumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!...

Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!...

E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição. É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!

Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...

‒ Ah! patrício! Deus existe!...

No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...

‒ Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era Ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...

O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...

Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...

E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.

E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso ‒ tirando umas leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores ‒ vender a tropilha dos colorados... e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!

E despacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio.

Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado.

O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.

Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram.

Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com ganas.

Então fui para dentro: na porta dei o ‒ Louvado seja Jesu-Cristo; boa-noite! ‒ e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças dentro.

‒ Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi o susto?...

E houve uma risada grande de gente boa.

Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés...

*****

Do livro "Contos Gauchescos", de João Simões Lopes Neto


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A Missa Crioula - 2ª parte



O que é a Missa?

01

Gauchada, peões e prendas,
Siás donas, piás e Patrão,
Permiti que vos explique
Em versos, nesta ocasião,
O que significa a missa
No culto da Religião.

03

Lá no Egito, por exemplo,
Adoravam o sol e gato,
Júpiter, deus dos romanos,
Tupã dos bugres do mato,
Até a vaca lá na Índia,
Chegou a ser deusa de fato.

05

Os povos agradeciam
Todo este Universo em flor,
A pedra, a planta, a vida,
A inteligência e o amor,
O bem, enfim, tudo o mais
Que nos deu o Criador.

07

Assim Abel, por primeiro,
Ofereceu prestimoso
O melhor fruto da horta
E Deus aceitou gostoso.
Caim não gostou da história
Matando o irmão de invejoso.

09

Foi então que Jesus Cristo
Subiu o Calvário solito,
E em nome do povo todo
Ofertou ao Deus bendito,
Um presente sem limite,
Um sacrifício infinito.

11

Cristo, sim, ofereceu
A Deus o maior presente,
Não foi comida, nem bois,
Nem sangue de algum parente,
Mas foi o sangue divino,
Que é puro, virgem, inocente.

13

Mas Cristo fez ainda mais:
Demonstrou maior justiça,
Mandou que se repetisse
Seu drama da Cruz roliça.
E Cristo atravessa os tempos
Morrendo em cada Missa.

15

É verdade... em cada Missa
O Cristo morre de novo,
Oferecendo outra vez
A Deus em nome do povo,
Seu sangue dentro de um cálice
Muito simples sem retovo.

17

Ele morre de outro jeito,
Morre sem crucifixão,
Vereis seu Corpo e seu sangue
Em real separação.
O Sangue dentro do vinho
E o Corpo dentro do pão.

19

Deus fez bem em não mudar
Por fora e pão e o vinho;
Quem bebe o Sangue de Cristo
De sangue tendo gostinho?
Quem come a Carne de Cristo
Se o pão mudasse um pouquinho?

21

Quem vai ofertar a Deus
Este presente grandote,
Não é só Cristo e o Padre,
Mas todos os cristãos do lote,
Sois vós e Cristo reunidos
Pelas mãos do Sacerdote.

23

Nossos trabalhos e dores,
Problemas de cada dia,
Nosso corpo e nossa vida,
Nosso descanso e alegria,
Tudo o que temos e somos,
Suba aos céus com galhardia.

25

Rezemos, pois, esta Missa
Bem crioula, bem campeira,
Junto com Cristo Senhor
E a Virgem Mãe Medianeira,
Pelo querido Rio Grande,
Por toda a terra brasileira.

02

Todos os povos da História
Criam num deus justiceiro,
Embora nem sempre cressem
No Deus Santo e verdadeiro,
Como o nosso “Patrão Velho”
Que entre os deuses é o primeiro.

04

Fosse lá o deus que fosse,
Mas por deus tinham respeito;
Ofereciam presentes,
Cada povo do seu jeito,
Para que Deus com o povo
Se sentisse muito satisfeito.

06

Por isso a Bíblia registra
O esforço da Humanidade
Em oferecer presentes
Por louvor à divindade.
E o Deus Jahvé aceitava
Com toda a simplicidade.

08

O punhal sangrava o filho
No punho dos próprios pais.
E o povo ainda procurava
Um presente mais capaz,
O povo ainda sentia
Que Deus merecia mais.

10

Foi lá de braços abertos,
Tendo um prego em cada mão,
Espinhos sangrando a face,
A lança no coração,
Que o próprio sangue de um Deus
Tingiu as pedras do chão.

12

E Deus do céu contemplando
Seu próprio filho na Cruz,
Recebendo essa homenagem
Que por nós lhe deu Jesus,
Exclamou: agora basta!
A noite se encheu de luz.

14

Pois quis que todos os homens,
Todas as raças, países,
Homens de todos os tempos
Presenciassem como juízes,
Esta oferta que ele fez
Para nos fazer felizes.

16

É claro, Jesus na Missa
Não morre como morreu,
Pregado lá no Calvário
Pelo seu povo judeu,
Mas na missa é o mesmo sangue
Que na Cruz ofereceu.

18

Mesmo que o pão e o vinho
Não mudem nada por fora,
Conservem a cor e o peso
O mesmo gosto de outrora,
 Mas por dentro, bem por dentro,
São diferentes agora.

20

Vede que a Missa é um presente
Dum valor descomunal,
Oferecemos o Sangue
Do Patrão Universal,
Por isso a Igreja nos pede
A Missa Dominical.

22

Vamos reforçar a oferta
Do Sangue subindo à altura.
Ofereçamos, também,
Nossa humilde criatura
A luta do ganha-pão,
Tristezas, mágoas, agruras.

24

Assim como os grãos de trigo
Se unem formando um pão;
Assim como os bagos de uva
Formam vinho pela união,
Assim Cristo como nós todos
Nos unamos como irmãos.


(A Missa Crioula – Padre Paulo Aripe – 1968)

Tetras religiosas



Quatro pontos têm minha religião,
faço deles a minha filosofia
e faço deles a minha ação.
Viva, creia, ame e faça,
essa também é a minha oração.

Viva sua filosofia,
ame a sua arte,
creia na sua religião
e faça a sua parte.

Mas não use sua religião
pra tentar reprimir o outro,
somos sete bilhões de mentes no mundo
e querer que todo mundo creia na mesma coisa
é, no mínimo, papo de louco.

Eu respeito todos que têm fé,
eu respeito todos que não a têm.
Eu respeito quem crê num Deus,
eu respeito quem não crê em ninguém.

Eu gosto de quem tem fé no verso,
eu gosto de quem tem fé em si mesmo.
Eu gosto de quem tem fé no universo,
e eu gosto dos que andam a esmo.

Um abraço para quem é da ciência,
um abraço para quem é de Deus.
Um abraço pra quem é da arte,
e um abraço para os que são ateus.

Axé pra quem é de axé,
amém pra quem é de amém.
Blessed be pra quem é de magia,
e amor pra quem é do bem.

Intolerância religiosa
é a própria contradição.
Religião vem do latim religare,
que significa união.

Então, pare de dividir o mundo
entre os que vão
e os que não vão para o paraíso.
O nosso mundo está doente em tudo,
enquanto nós perdemos tempo brigando por isso.

Ao invés de dividir as religiões,
entre as que são do mal e as que são do bem,
que tal botar sua ideologia no bolso e ajudar aquele moço,
que de frio morre na rua desamparado e sem ninguém.

Os grandes mestres já disseram que precisamos de união,
Então, por que não fazer do respeito também uma religião?

Mariana Souza – 20 anos* - artesã**


P.S. O vídeo da leitura desse texto está na Internet recitado pela própria autora do poema, com o título de: “Tudo começa pelo respeito”.

Vale a pena escutá-lo acompanhando a leitura dele, que está transcrito acima.

Dados sobre a autora

Mariana Souza, de São Paulo, que também assina como Souza Anamari, tem 20 anos, é artesã, e está rodando o mundo da internet com um poema sobre intolerância religiosa capaz de encher de emoção o coração de qualquer um. Anamari afirma já ter sofrido preconceito religioso e foi uma situação assim que serviu de inspiração para o poema: “Tudo começa pelo respeito”.

*   Tinha 20 anos quando escreveu o texto...
** Era artesã, não sabemos se ainda o é...