domingo, 30 de janeiro de 2022

Mais triste que a estrada

 Paulo Mendes

Pintura de Emerson Matos

Via o Leco apequenar-se estrada afora naquela segunda-feira escaldante de um fim de janeiro. Ia ele, a alazona malacara e sua alma campeira e triste, mais triste que aquele caminho avermelhado de fim de tarde. Leco passara no bolicho, dias antes, para se despedir, pagar umas continhas, explicar que não mais o queriam na estância. Até deram prazo de um mês para que arrumasse outra ocupação, porque agora as coisas haviam mudado, os novos donos do estabelecimento iriam se dedicar às lavouras, precisavam de tratoristas, operadores de máquinas, e não mais de um peão de fazenda criado no lombo do cavalo, laçador e pealador* de mão cheia, tropeiro, ginete e domador, um homem que sabia pelo olhar se a vaca era boa parideira ou se o potro era velhaco. Mas que importância tinha isso tudo agora? Seu Turíbio, que muitos conselhos havia repassado ao peão, enchera os olhos d’água e dissera: “Vá, meu filho, nunca há de faltar serviço a um gaúcho que é bom de lida.” 

Então Leco passara ao trote, no primeiro suor, depois, lá na coxilha grande, que ficava cinzenta no fim da tarde, a alazona diminuíra para o tranco, sem vontade de ir. Como seu dono. Eu vira também a égua ainda potranca sendo conduzida pelo buçal “pra ir pegando gosto pelos corredores”, brincava o Leco. Depois ele a domou, isto é, apenas colocou os arreios, um bocal de tentos, e logo o freio. Era um florão aquela égua, doce de boca, de cômodo macio, era como se no lombo dela estivéssemos andando de automóvel. Desempregado, o Leco pagou o que devia no nosso bolicho, vendeu a gaita com que tocara tantas vaneiras*, xotes e chamamés* nas tardes domingueiras e, resoluto, tirou da bota um punhalzinho prateado e colocou sobre o balcão. “Fique com ele, querido amigo, para que se lembre de um campeiro honesto e trabalhador que viveu na Vila Rica, mas que agora se vai embora, porque aqui não tem mais serviço.” 

Quando olhei de novo, não o vi mais. A estrada estava vazia, como vazio ficou o bolicho por longos dias. 

Vinham clientes, mas alma não tinha mais. Não se escutavam acordes de cordeona, não se via mais a alazona atada debaixo dos cinamomos, nem a risada comprida do Leco depois de contar um causo de assombração. E os dias foram passando, a cavalhada deu lugar aos tratores que ficavam estacionados ao lado e na frente do bolicho. Não vi mais tropas cruzando nervosas em direção ao frigorífico, matarias foram sendo derrubadas, os açudes aterrados, as sangas de água pura desapareceram. Restaram imensas lavouras sem fim, que o progresso nos impôs. 

Há uns dois ou três anos voltei à Vila Rica, ao Passo dos Buracos, ao Rincão do Cerrito. Quando dobrei na Esquina Maboni, a uns 300 metros de onde dona Mirica e seu José Mendes ergueram a venda, enxerguei um gaúcho bem pilchado, montado numa égua de pelo lustroso. Foi então que lembrei do meu amigo Leco, o campeiro, que sumiu na polvadeira* para os lados dos castelhanos. Quem fim o mundo deu dele? Será que ainda vive? Pouco provável. Restou a saudade, dele e de todos os gaúchos que a pata de cavalo sustentaram nossas fronteiras, trabalhando de sol a sol ou peleando nas revoluções. Ficou a lembrança de um gaúcho pegando a estrada. Ficou o punhal de prata pendurado na parede. 

******* 

Da coluna Campereada, do Correio do Povo Rural, janeiro de 2022. 

*Pealo: laço usado para prender animal, geralmente cavalgadura, pelas mãos e derrubá-lo, enquanto está correndo. Pealador é o peão de estância que se utiliza dessa técnica. 

*Polvadeira: poeirada. 

* (ou vanera): é um tipo de dança típica do Rio Grande do Sul, com ritmo moderado. Sem sombra de dúvida, a vaneira é o ritmo mais apreciado e mais executado nos bailes gaúchos. 

*Chamamé: é um ritmo folclórico argentino originou-se na província de Corrientes/Argentina. Por isso, não há uma tradução para chamamé. Para os argentinos, chamamé significa “senhora ama-me”. No Brasil, a palavra tem o significado de “chama-me para bailar” ou “aprochegar-se de mim”.


O cronista Paulo Mendes é autor do livro Campereadas, uma obra que retrata a vida do gaúcho típico, que trabalhava em fazendas de gado no interior do Rio Grande do Sul. Obra imperdível para se entender a cultura típica gaúcha.

Um comentário: