sábado, 6 de agosto de 2022

Canto a mim mesmo

 Eduardo Bueno

Sou um poço de contradições. Sou uma poça sem fundo. Ouça o que digo, não faça o que eu faço – nem em versos nem na prosa. Sim, sou um poço de contradições: eu contenho multidões. Comprei essa estrofe por meia dúzia de tostões. Paguei com letras de câmbio e um dólar furado, porque se o perigo mora ao lado, estava distraído. 

Sou todas as mulheres do mundo. Sou o crepúsculo do macho. Sou deus e o diabo na terra do sol. Sou pai, sou pá, sou Poe. Me chame Ismael, e eu trago o capitão Ahab. Sou a baleia branca, sou o corvo negro. Sou Pat Garret e sou Billy, the Kid. Sou iceberg, sou Titanic. Sou relâmpago em céu sem nuvem passageira. Sou tempestade em copo d´água que com o vento se vai e vem. 

Sou preto no branco. Sou cinzas. Sou brasa dormida, sou incêndio florestal. Sou aguaceiro no deserto. Sou Pessoa – mas também campos e caieiros, e reis e rainhas concretas de campos e espaços. Sou incompatibilidade de gênios e estou de mau humor. Não farei meu poema enquanto estiver de mau amor... 

Sou uma tautologia tatibitati. Sou um axioma, um teorema, uma premissa errada, uma promessa quebrada, um livro aberto, um enigma indecifrável. Sou esfinge: devora-me ou te decifro. Ser e não ser ao mesmo tempo agora – eis minha questão. 

Sou duas caras da mesma moeda. Sou terno, sem gravata. Sou eterno, dado a bravatas Vou fundo, mas sou raso; sou ralo mas não vazo. Sou sexus, plexus e nexus; sou côncavo e convexo. 

Sou eu versus eu. Sou um canto de mim mesmo, tão estreito quanto o canto em que me escondo, e quanto mais escuro, mais eu canto. Quem sabe aí esteja meu encanto. Não ando à minha cata, mas estou sempre me encontrando. Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém. Viro meu pior inimigo na hora em que prego. Com o coração eu juro, com a boca, renego 

Solto meu uivo composto nos porões, trepado nos telhados do mundo. Sou uma nuvem de calças, sólido como o vento. Me liquefaço, mas me refaço a cada passo. O que vier eu traço, sem régua nem compasso. Brilho de noite, me apago de dia, filho da mesma agonia. 

Não sou brasileiro, não sou estrangeiro. Não tô nem aí, não tô nem aqui. Sou um gigolô de palavras, um agiota das letras. Empresto verbos a juros. Sem correção. Sou ladrão de versos, de vozes, às vezes, de reflexos. Não cito fontes, não dou créditos, não sou fiduciário. Só digo a verdade se juro em falso. Sou grave, sou agudo, sou circunflexo. Eu me contradigo? Sim, eu me contradigo. Pois cá comigo abrigo uma multidão dos meus próprios desamigos, na santa paz de meu jazigo. 

Sou Diadorim, na noite da taverna. Traí Capitu, beijando Iracema com lábios de fel. Bocejo com Macunaíma e vivo a morte severina. Sou casmurro, sou machado. Sou póstumo. Eu postulo, eu presumo, eu postergo. Eu exumo, eu exijo, eu acuso, eu insisto. 

Eu desisto. 

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(Do jornal Zero Hora, agosto de 2022)

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