segunda-feira, 10 de abril de 2023

Retrato Falado

 Luís Fernando Veríssimo

Uma das coisas que eu não entendo é retrato falado. Em filme musical americano o retrato falado sai sempre a cara do criminoso, até o último cravo. Mas na vida real, que nada tem de filme americano, o retrato falado nunca tem o menor parentesco com a cara do cara sendo preso. 

– Atenção. Aqui está o retrato falado do homem que estamos procurando. Foi feito de acordo com a descrição das dezessete testemunhas do crime. Decorem bem a sua fisionomia. Está decorada? 

– Sim senhor. 

– Então procurem exatamente o contrário deste retrato. Não podemos errar. 

Imagino os problemas que não deve ter o artista encarregado dos retratos falados na polícia. Um homem sensível, obrigado a conviver  com a imprecisão de testemunhas e as rudezas da lei. 

– O senhor mandou me chamar, Inspetor? 

– Mandei, Lúcio. É sobre o seu trabalho. Os seus últimos retratos falados... 

– Eu sei, eu sei. Mas é que eu estou numa fase de transição, entende? Deixei o hiper-realismo e estou experimentando com uma volta a formas orgânicas e... 

– Eu compreendo, Lúcio. Mas da última vez que usamos um retrato falado seu para pegar alguém, a turma prendeu um orelhão. 

O pior deve ser as testemunhas que não sabem descrever o que viram. 

– O nariz era assim, um pouco, mais ou menor como o seu, Inspetor. 

– E as sobrancelhas? As sobrancelhas são importantes. 

– Sobrancelhas? Não sei... como as suas, Inspetor. 

– E os olhos. 

– Os olhos claros. Como os... 

– Já sei. Como os meus. O queixo? 

– Parecido com o seu. 

– Inspetor, onde é que o senhor estava na noite do crime? 

– Cala a boca e desenha, Lúcio. 

E há os indecisos. 

– Era chinês. 

– Tem certeza? 

– Bom, ou era chinês ou tinha dormido mal. 

E deve haver a testemunha literária. 

– Nariz adunco, como de uma ave de rapina. A testa escondida pelos cabelos em desalinho. Pelos seus olhos, vez que outra, passava uma sombra como uma má lembrança. A boca era de uma sensualidade agressiva mas ao mesmo tempo tímida, algo reticente nos cantos, com uma certa arrogância no lábio superior que o lábio inferior refutava e o queixo desmentia. Narinas vividas, como as de um velho cavalo. E isso que eu só o vi por dois segundos. 

Os sucintos. 

– Era o Charles Bronson com o nariz da Maria Alcina. 

− Tipo Austregésilo de Athayde , mas com bigodes mexicanos. 

– Uma mistura de cachorro Boxer, comandante da Varig e beque do Madureira. 

– Bota aí: a testa do Remy Gorga Filho, o nariz do Giscard D’Estaing, a boca do porteiro do antigo Fred’s e o queixo de Virginia Woolf. Uma orelha da Jaqueline Onassis e a outra, estranhamente, do neto do Getty. 

– A Emilinha Borba de barba  depois de um mau voo na Ponte Aérea com o Nelson Ned. 

E há as surpresas. 

– Bom, era um cara comum. Sei lá... Nariz reto, boca de tamanho médio, não tinha bigode... Ah, e um olho só, bem no meio da testa! 

O Ciclope ataca outra vez. 

Experimente você dar as características para o retrato falado de alguém. 

– Os olhos da Sandra Bréa. Isso. Um pouco menos sobrancelha. O nariz da Claire Bloom. De 15 anos atrás. A boca da Cláudia Cardinalle. O queixo da Elizabeth Savala. Um seio da Laura Antonelli e outro da Sydne Rome. As pernas da Jane Fonda. 

– Feito. Mas quem é essa? 

– Não sei. Mas se a encontrarem, tragam-na para mim, depressa. E viva!

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