terça-feira, 7 de maio de 2019

Fim da viagem

Por Mauro Ventura*


As férias chegam ao fim, volto ao Rio, mas trago na bagagem recordações de Lisboa. Ao contrário dos cariocas, tão afetuosos e expansivos, os portugueses carregam em si um formalismo que chega a ser engraçado. A turista brasileira perguntou a um passante:
− Eu queria ir para o Mosteiro dos Jerônimos.
− Ora, minha senhora. A senhora vai para onde quiser − ouviu de volta.

Um amigo português me explica que ela deveria ter perguntado de outra forma:
− Boa tarde. Por favor, o senhor sabe me informar como faço para ir ao Mosteiro dos Jerônimos?

Outro conhecido estava procurando a Rua do Ouro, como é popularmente chamada a Rua Áurea. Roda daqui, roda dali, já estava perdido havia uns 30 minutos, quando resolveu pedir ajuda a um guarda:
− O senhor sabe onde fica a Rua do Ouro?
− É aqui mesmo.
− Mas na placa está dizendo Rua Áurea!
− Se o amigo soubesse um pouco de latim... − ironizou o policial. 

Em Lisboa, o ritmo das coisas é mais lento. Eu estava no ônibus quando duas brasileiras, afobadas, começaram a empurrar as pessoas à frente na tentativa de descer mais rapidamente.
Um português virou-se e disse:
− Em Portugal, tem-se que ter calma.

Uma das figuras mais agradáveis que reencontrei foi o jornalista Duda Guenes. Ele mora em Portugal desde 1974 e é um frasista de primeira. Uma delas: “Isso é mais falso que folclore baiano”.

Pernambucano, Duda diz que a melhor definição que já encontrou do Brasil foi no estatuto de uma gafieira no Recife. Um dos itens dizia: “Proibido dançar mais de uma vez com a mesma dama. Mas, se quiser, pode.”

Duda tem um amigo que coleciona bens imateriais. Mais especificamente, apertos de mão. O sujeito tem anotadas todas as mãos importantes que já apertou, de JK a Rita Lee e Rita Pavone.

Mas a figura mais inusitada de Lisboa pode ser vista toda madrugada numa esquina da cidade. É um senhor distinto, de família aristocrática, vestido de blazer, que passa a noite dando tchauzinho e sorrindo para todos os carros que passam. Numa dessas noites, meu pai resolveu retribuir o cumprimento e recebeu em troca um dos sorrisos de felicidade mais genuínos que já vi.

Enquanto isso no Brasil...

O melhor de Paris talvez seja atravessar o sinal sem olhar para os lados. Turista tende a idealizar a cidade que visita, mas a verdade é que aqui os carros − e bicicletas − param a qualquer hora do dia e da noite. No Rio, é com solavancos na alma que passamos por qualquer cruzamento, mesmo à tarde.

Lembro o dia em que passei com a luz verde e um taxista que vinha na outra rua furou o sinal e berrou para mim:
- Seu egoísta!

Tudo porque eu não parei e o deixei ultrapassar o sinal vermelho em paz. Dia desses, em Ipanema, no começo da tarde, uma senhora esperava pacientemente o sinal abrir.  O homem que vinha no carro de trás buzinava com insistência. Quando viu que o barulho não ia forçar a brava motorista a desrespeitar a lei, ele apelou:
- Tá pensando que está na Suécia, ô perua!

Minha amiga brasileira, com quem almoço no bairro árabe de Ménilmontant, em frente à igreja onde Brian De Palma filmou a cena mais impressionante de “Femme fatale”, diz que eu não vi nada. Certa vez, no Rio Comprido, ela teve que se desviar e quase caiu no canal por causa de um taxista que furou o sinal e ainda por cima a xingou:
- Sua filha da puta! Eu sou homem e a prioridade é minha.
  
Pelas ruas de Paris
          
Anoitece e um vento frio substitui o calor que havia feito de dia. Na porta de um banco, um mendigo toma vinho e lê o jornal.

Minha atenção é desviada para uma aglomeração de carros de polícia, cena rara em Paris.  Mas eles estão ali para cuidar do trânsito e permitir que centenas de patinadores deslizem pela cidade em segurança. Juntos, vão também alguns policiais-patinadores.

Entro numa livraria. Vejo Fernando Pessoa numa estante e penso em como “Livro do desassossego” soa muito mais poético do que “Le livre de l'intranquilité”.

Pego o metrô. Já passa das dez da noite. No vagão, um rapaz abre seu notebook e começa  a escrever no computador. Duas moças tiram fotos uma da outra com uma câmera digital. Uma jovem ouve música no seu ipod. Outra abre a carteira e começa a contar o dinheiro.

Salto perto de um parque lindíssimo, rodeado de prédios milionários. Um deles chama a atenção pela beleza.

De curiosidade, dou uma olhada no interfone para ver quem são os moradores. Um nome soa familiar: M Lutfalla. Penso em apertar o botão e perguntar se monsieur Paulô Maluf está, mas já havia recebido notícias do Brasil e sabido que àquela altura o ex-prefeito estava na cadeia. Uma alegria cívica me acompanha na volta para casa.

*****

Mauro Ventura nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. É repórter especial do Segundo Caderno de O Globo e assina a coluna Dois Cafés e a Conta, na Revista O Globo. Em 2008, recebeu o prêmio Esso e o prêmio Embratel pela reportagem “Tribunal do tráfico”. Ele é filho do jornalista e escritor Zuenir Ventura (1931). 


Nenhum comentário:

Postar um comentário