Sou a cabeleira do Zezé,
a Maria Sapatão e o coitado do Waldemar.
a Maria Sapatão e o coitado do Waldemar.
Eu sou o pirata da perna de pau,
o gato na tuba, o Zé Pereira e aquele outro mais que, depois de jogar pó de
mico no salão politicamente correto, chamou na chincha a nega do cabelo duro.
Não me importa se a mula é manca, não me importa se a radiopatrulha chegar aqui
agora. Eu quero rosetar, garrafa cheia não quero ver sobrar. Acima de tudo
quero comemorar, nesta segunda-feira de carnaval, a honra de ter sido, eu, a marchinha
de carnaval, essa jardineira triste, essa Maria escandalosa, tombada como
patrimônio imaterial do Rio de Janeiro.
Eu sou muitas, e também o
velhinho na porta da Colombo, a coroa do rei, o pedreiro Waldemar e o deputado
baiano, aquele que fala pouco para falar do coco. Peço a palavra para dedicar
tamanha honraria patrimonial a todos que me seguraram a chupeta, pegaram o
bonde de São Januário e passearam comigo no estribo dessa história cheia de
confete, pedacinho colorido de saudade. Sou a marchinha do Kelly, do Lalá e do
Braguinha. Obrigado, Rio, cidade que desde a marchinha “Vagalume”, de 1955, me
seduz por de dia faltar água e de noite faltar luz − e fico feliz porque até
hoje as doutas autoridades municipais pouco fizeram para me deixar desatualizada.
Meu obrigado também à favorita da
Marinha, à Sapoti e à incomparável Marlene, damas encantadas sem as quais eu
não teria tirado o cavaco do pau, não teria dançado o bigorrilho, o minueto no
Municipal e nem sassaricado gostoso, ui, ui, ui, com a delícia que é a mulher
do Ruy. Eu sou a Zilda do Zé, o Paquito e o Romeu Gentil.
Como fez Orlando Dias no carnaval de 1965, eu digo saravá,
meu pai!
Como fez Osvaldo Nunes no desfile
do Bafo da Onça em 1962, eu grito oba!, é nessa onda que eu vou.
Eu estou nas bocas desde que em
1899 Chiquinha Gonzaga fez o “Abre alas” para o Cordão Rosa de Ouro, e devo
dizer, para aproveitar a rima, que ainda dou no couro. Ainda passo a mão na
saca rolha e, enquanto tem garrafa, enquanto tem funil, é comigo mesmo. Balzaquiana,
nega maluca, fale de mim quem quiser falar. Não me importo. Me segura que eu
vou dar um troço e, aos que querem detalhes, garanto que ainda chupo muita uva
no alto do caminhão. Leia na minha camisa: “Ah, coelhinho, se eu fosse como
tu!”.
Eu sou o quebra, quebra,
gabiroba, a voz do morro, a piada de salão e a mulher do seu Oscar, aquela que
se foi lacônica, um bilhete em cima da mesa, dizendo “não posso mais, eu quero
é viver na orgia”. Sou a marchinha de duplo sentido, a pipoca bem quentinha e a
Dircinha Batista levando bomba na prova tão dura, mamãe, que naufragou e se
molhou toda.
Há mais de um século, com
pandeiro ou sem pandeiro, eu brinco. Eu sou o Rei Zulu, o general da banda, o
retrato do velho outra vez, e tenho como única certeza a de que a mulata é a
tal. Deus me perdoe, mas para levar outra vida é melhor morrer. Tenho fé, como
canta o pessoal dentro do ônibus, que se essa porra não virar, eu chego lá em
Maracangalha, na casinha em Marambaia ou no mundo de zinco que é Mangueira.
Eu já vivi muitas emoções nos
bailes do Municipal, do Hotel Glória e dos Enxutos, no Teatro São José da Praça
Tiradentes. Sou a cabeleira do Zezé, a Maria Sapatão e o coitado do Waldemar,
aquele que comeu carne de boi com hormônio no carnaval de 1959 e deu pra se rebolar.
Acontece. Eu topo todas sem perder o tom. Brinco nas onze. Virei hino oficial
da cidade e, justo agora, ao ser perenizada patrimonialmente, eu quero chorar,
mas não tenho lágrimas.
Sei que Edgar chorou quando viu a
Rosa girando toda prosa numa baiana que ele não deu. Sei também que Madureira
abriu o berreiro quando a voz do destino a sua estrela levou. Sei, por fim, que
o Blecaute, no carnaval de 1959, provocou os Eikes da época cantando o “chora,
doutor, chora, eu sei que o medo de ficar pobre lhe apavora”. A todos lamento a
tristeza.
Eu deveria estar chorando, mas a
fonte secou. Prefiro, mais ao estilo da festa que represento, gargalhar como
faria o grande Risadinha ou chamar Lamartine para ele gritar, imperativo, na
segunda do plural, o seu fabuloso “ride, palhaço!”. O carnaval mudou, acabaram
com a Praça Onze, e as mulheres que me foram musas esses anos todos também. Eu
sou a filha da filha da Chiquita Bacana, amasiada com a mulata bossa nova, e,
em 2015, se alguém nos convidar pra tomar banho em Paquetá, pra piquenique na
Barra da Tijuca, agora vamos dizer que yes, nós somos sacanas. Pra nossa
fantasia de diabo não falta nem mais o rabo.
Eu sou a Maria Candelária, o
“seu” China na ponta do pé, e voltei a cantar com júbilo por ter os méritos
consagrados e estar, segundo os bofes sarados do Rola Preguiçosa, melhor do que
nunca. Eu sou fã da Emilinha. Sou a garota Saint Tropez, com o umbiguinho de
fora, laranja da Bahia que o Jorge Veiga cantou em 1964. Sou a garota
gostosura, proibida pela censura − e, quando eu passo, se pisco o olho, no
bole-bole, todo mundo grita “vai que é mole”. Sou assim, a marchinha, vem ni
mim que eu sou facinha.
Texto de Joaquim
Ferreira da Silva,
No livro “O Melhor do
Humor Brasileiro”,
organização de Flávio
Moreira da Costa.
O nome correto do escritor é Joaquim Ferreira dos Santos.
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