Juremir Machado da Silva
A
gente subia no ônibus pela porta de trás. As pessoas se amontoavam nas paradas.
Os bancos eram vermelhos. O cobrador gritava com os passageiros: “Um passinho
mais à frente, por favor”. Havia flâmulas enfeitando o alto do para-brisa,
acima do motorista, como se fosse a parede de vidro de uma sala ou a janela
envidraçada dando para uma paisagem
Num determinado ponto havia uma estação de transbordo. Mas o projeto falhara. Restavam colados nos vidros círculos com letras “A”, “B”, “C”, que orientariam a posição dos ônibus no corredor de alinhamento e circulação. A cidade era uma imagem desfocada no começo de um fim que ainda se desenhava como uma possibilidade. Vez ou outra, ouvia-se um comentário: “A ditadura já era”. Depois, retomava-se o silêncio, salvo às segundas-feiras, quando era possível ouvir comentários sobre jogos de futebol do final de semana. Nas paredes de prédios tristes, inscrições em letras trêmulas marcavam um personagem: “Toniolo”. Para o recém-chegado, tudo era mistério. Na memória em trânsito, cenários se misturam. Os gestos dos motoristas eram lentos e saturados. Eles puxavam a enorme palanca das marchas e soltavam a mão no ar como se mostrassem cansaço, tédio ou fastio.
O cobrador espalitava os dentes ou coçava o bigode ralo lembrando um centroavante de revista em preto e branco. Tudo se repetia a cada parada, soturna e solidamente, num avanço lento do subúrbio, com ar de cidade do interior e árvores empoeiradas inclinando-se das calçadas para as ruas, passando pela avenida comercial e industrial, com sua tristeza de asfalto e certa decadência precoce, até o centro, com sua turbulência sem futuro e suas lojas chamando clientes apressados pelo destino ou apenas pela rotina. O trajeto era uma espécie de evolução do passado para o presente, do rural ao urbano, da nostalgia à necessidade, do descanso ao trabalho.
Algumas vezes, um homem, sempre mais velho, erguendo-se lentamente até se tornar ereto e altivo, dava o lugar para alguma mulher esbaforida. Os mais jovens baixavam a cabeça fingindo dormir ou pensar. A mão direita do motorista erguia-se como se buscasse um impossível apoio no vazio. O cobrador, no seu poleiro, fitava o congestionamento com indiferença ou ceticismo. Chegar não lhe importava.
Na pasmaceira do veículo, janelas escancaradas, por onde entravam fuligem e ruídos, diante das expressões incolores da vida comum, sem mágoas nem exuberância, eu lia absorto “Um centauro no jardim”, de Moacyr Scliar. O cobrador tirava o palito da boca, olhava para baixo, onde eu me protegia do caos ordenado, e perguntava:
− É bom esse livro?
− Maravilhoso.
*****
(No Correio do Povo)
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