Giuseppe Ghiaroni
Mãe, se eu morrer de um repentino
mal,
vende meus bens a bem dos meus
credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.
Vende esse rádio que ganhei de
prêmio
por um concurso num jornal do
povo,
e aquele terno novo, ou quase
novo,
com poucas manchas de café
boêmio.
Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.
Vende, além das gravatas, do
chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o
Céu
e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O
Paraíso
requer apenas a expressão do
olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó
qualquer
que os guarde numa loja
poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de
mulher.
Vende tudo, ao findar a minha
sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu
viva.
Pode vender meu próprio leito e
roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas
poupa
esta caduca máquina em que
escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas
mortas,
de teclas bambas, tique-taque
incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças
tortas.
Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de
tristezas!
Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do
mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.
Bate rangendo, numa espécie de
asma,
mas cada vez que bate é um grão
de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar
consigo
há de levar consigo o meu
fantasma.
Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas
solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu
morrer;
deixa-a calar numa quietude
extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para
fazer.
Conserva-a, minha mãe, no velho
lar,
conservando os meus íntimos
instantes,
e, nas noites de lua, não te
espantes
quando as teclas baterem devagar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário