quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Marimbondo roncador

Texto e foto de Celito Brugnara


A pandorga marimbondo: cores brasileiras e fotos de netos do autor.

Brinquedos para diversões naqueles tempos de guri eram poucos, e nada fabricado, nada artificial ou digital como agora, eram preparados manualmente, canivete e pulso. As brincadeiras se desenvolviam na rua, não no sofá, ao vento, não com ar-condicionado. E um deles, muito apreciada, era a pandorga.

Dois eram os formatos comuns: o marimbondo pros guris, e a bomba pras gurias. O marimbondo era retangular, em que os lados, largura e altura, guardavam a relação da divisão áurea, explicada por nossa professora do quinto primário, pela qual, comparadas as dimensões, se a base (largura) correspondesse a 2 e altura a 3, chamava a essa relação 2/3, uma divisão de desequilíbrio harmonioso; e no cabeçote, um roncador; o marimbondo roncava com o rumor de lâmina de papel no fio esticado por cana arqueada. A bomba era redonda, com oito raios e cabeleira em sua a volta para suavizar a circunferência; a bomba chiava pelo roçar do vento em suas franjas de papel coladas a seu redor. Ainda, para fique equilibrada no céu, a pandorga, para que não gire, nem coleie, instala-se um rabo de pano, e de extensão e peso a neutralizar as forças atuantes, verticais, horizontais.

Havia outros formatos: a caixa, o papagaio, a estrela, o barquinho; contudo os preferidos eram o marimbondo e a bomba.

Fazer pandorga é uma arte. Utiliza-se o bambu, aquele arbusto vegetal que nós desde pequenos chamamos de taquara, um tubo longo e fino, muito resistente. Aberto, ao longo do eixo, retiram-se as “canas” que, alisadas e conformadas, são próprias para formar a estrutura das pandorgas. Finas, para não pesarem, e firmes para suportar a carga do vento.

A armação, por sua vez, consistia em amarrar com piola duas canas principais em xis, e uma auxiliar horizontal para fortalecer a estrutura. No entorno, para a conformação final, o fio bem esticado. Na forração da estrutura, utilizava-se papel encerado e de cores variadas conforme a composição desejada. A cola, para fixar o papel, era preparada com pasta de polvilho em várias tentativas de medida e temperatura da água para atingir a pasta com ponto de pega. Essa cola, por vezes, servia para alisar a rude piola de remonte.

Na Fronteira, Semana Santa é a época tradicional para remontar cometa, designação do marimbondo, comum aos santanenses e riveirenses. Talvez por ser época de ventos, talvez por ser um tempo de recolhimento, de afastamento até os morros da cidade em que o silêncio favorece fugas das preocupações diárias, enquanto pelos céus se observam coleando os marimbondos erguidos e sustentados pelo vento. Rabo coleando e, como malandragem, nele fixadas lâminas de gilete em cruz para cortar a linha das outras pandorgas ao roçar por ela o rabo.

Com um pouco de jeito e arte, para que fique pronta e acabada, se monta a pandorga; mas remontar é preciso arte e paciência. É preciso vento, é preciso lances e puxadas de linha, um barbante não muito grosso, e que não pese demais, mas resistente para suportar a força do vento, e quanto mais comprida, mais alto sobe o marimbondo; e quando falta vento, roga-se a São Pedro com o estribilho: “Venha vento, seu porteiro, venha vento, seu porteiro”. Se para o pescador a decepção é a falta de lambari, para o cometeiro é a ânsia pelo vento. Na falta, nunca o bom remontador corre para conseguir pressão necessária, a pandorga pode se acostumar e ser tornar uma corredeira, e então sempre exigirá a corrida para subir.

Ajustar os tirantes, que eram três, fixados no corpo do marimbondo: dois deles nos extremos do cabeçote e o terceiro normalmente no cruzamento das canas que formam a estrutura, ou pouco abaixo, conforme experiência determinava para reduzir a possibilidade de o bicho “colear”. Os tirantes eram dispostos de tal forma a se obter o ângulo mais favorável em relação à direção do vento para sustentação e subida da pandorga e que as tentativas têm demonstrado ser de 60º com o horizonte. E como estabelecer esse ângulo? Fácil, basta posicionar o corpo do marimbondo junto ao chão, inclinar e, por ajustes, alongando ou encurtando o terceiro tirante, de modo que o cabeçote fique afastado do piso com altura igual à metade comprimento da pandorga.

Um específico marimbondo cruzou os mares, andou pelos ares da América, Europa e Ásia. De início, conheceu os abafados do morro da Vigia do Pampa Gaúcho, depois se elevou nos rarefeitos das alturas do Pichincha, 5000 metros, junto a Quito, e no ombro do vulcão Cotopaxi, no Equador, mais tarde, nos orientais e misteriosos de Siem Rep, no Vietnã, e nos velhos de Espanha, que em morro ao longe, na contraluz da tarde se desenhava o perfil do maciço de Montserrat, e quase envolto pelos úmidos do Lago Constanza, na Alemanha. Sempre a mesma estrutura, resguardando o revestimento original, remendado quando necessário, forrado com papel encerado, hoje difícil de encontrar em lojas. E num dia infeliz, se foi pelas nuvens, sumiu. Deixado preso a um poste, lá em cima, sem cuidados e talvez cansado de tanto suportar ventos, chuviscos, velho e desbotado por tanto sol pelas costas, desprendeu-se das amarras; nunca mais se soube dele.

E como agora comover e incentivar o neto ainda pequeno para essa brincadeira, se falta papel nas lojas, se cana na cidade é escassa, se morros livres não há? A esperança está numa velha pandorga guardada.
  
(Janeiro de 2019)



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