(Artigo a ser anexado ao livro “Coisas do Arco do
Velho”,
de Jack Manel)
Um navio mercante da
Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro
Aconteceu
exatamente às 16h do dia 2 de fevereiro de 1958.
Ao pisar na ponte de comando para
assumir meu quarto das 16 às 18 horas, o navio Loide Colômbia, do Lloyd Brasileiro*,
sofreu súbito e violento balanço. As tempestades surgem gradativamente dando
margem aos navegantes, baseados nas seguidas Forecast Wheather, irem procurando
se afastar dos centros de baixa pressão, que são o “olho” dos furacões,
tornados e ciclones. Este caso foi atípico. Pulamos de Mar de Almirante para a
ferocidade do Netuno.
Foi um corre-corre. Louças, panelas,
rádios e televisores se espatifaram no chão; cadeiras foram arremessadas contra
as anteparas. A marcha do navio foi reduzida à metade, o piloto automático foi
passado para leme manual e aproamos 45º aos vagalhões. As violentas arfagens e
caturragens arremessavam seguidas avalanches de um bordo para o outro, além de
jatos “sólidos” no alto da casa de navegação, que tiravam quase que totalmente
a visão exterior. Os limpadores de para-brisas centrífugos eram o único meio de
visão externa.
Em várias ocasiões, observamos a
vibração da estrutura do navio. A procela prosseguiu noite a dentro e emendou o
dia seguinte, sem esmorecimento. Aquele gigantesco berço de aço com 150 metros de comprimento
embalava o sono dos 52 “nenéns”, que precisavam calçar o corpo com
travesseiros. Andavam de pernas abertas para compensar o balanço.
Alimentavam-se de sanduíches, pois a cozinha estava inoperante. Quem sofreu foi
o pobre do padeiro que teve que se desdobrar.
--o--
À tarde, nosso telegrafista captou
pedido de socorro de um navio grego carregado de minério de ferro de Vitória-ES
para Baltimore. Não tínhamos a mínima condição de socorrê-lo, mas sabíamos que
o serviço de salvamento americano estava sempre atento e enfrentava qualquer
tempestade para salvar vidas. Soubemos que foi à pique. Outros SOS foram
captados.
Enquanto o oceano jogava peteca com
nosso barco, inúmeras estações de rádio de Porto Rico, Bahamas, Cuba, EUA,
entravam estourando nossos ouvidos, transmitindo alegres programas musicais e
humorísticos com muita alegria, contrastando com o nosso perrengue. Tudo bem,
outro mundo. Quem vem para a chuva é para se molhar. A tripulação estava
acostumada com essas fúrias marinhas nos Açores, Golfo da Biscaia, Golfo de
Lyon, Mar do Norte, Bahamas, Golfo do México, mas esse furacão estava
extrapolando. A nossa confiança era saber que os navios foram construídos
prevendo esses castigos, contudo, sempre seria bom lembrar, que o mar não
respeita navios. Procelas fazem parte da vida do marinheiro, principalmente a
nós, brasileiros, em cujas veias correm o heroico sangue português dos grandes
navegantes.
Quase a metade dos experimentados
marujos sofreu algum tipo de enjoo, porém, conseguiam sobrepujar o achaque e
mantiveram-se firmes em seus postos, com exceção do enfermeiro Angelim. Logo o
enfermeiro foi o que arriou de vez. Fui ao seu camarote visitá-lo e disse,
brincando:
- Ei,
Angelim, para com isso! Estamos chegando a Nova York. Vamos dar umas voltas na
montanha russa de Coney Island.
Ele,
prostrado, com os olhos semicerrados e com a boca aberta, balbuciou:
- Jack, meu amigo... eu estou morrendo... avisa a minha
mu... -
e fez mensão de vomitar. Um companheiro fiel logo o auxiliou a sentar e
debruçar no espaldar de uma cadeira invertida. Um balde, no chão, já não
aparava mais nada. Só faltavam os gorgomilos. Vendo-o debruçado de costas para
mim, tive a ideia de transferir a energia do meu corpo sadio para o dele
combalido, através das vibrações que emanam das pontas dos dedos das mãos. Esse
ensinamento obtive nos estudos na Ordem Rosa-cruz (AMORC). Fiz uma inspiração
especial, coloquei determinado dedo de determinada mão em determinado ponto da
espinha, e, em poucos segundos, Angelim se ergueu, saltou do beliche, e, em pé,
balançou os braços dizendo:
-
Estou forte! Estou forte! Estou com fome!
Pedi um copo d´água e mandei preparar uma
comida leve, enquanto o levei à porta e mandei fazer várias inspirações.
Fiquei assustado ao ver comprovada a
eficiência da aplicação da energia que emana do nosso corpo. Levantou um
defunto.
--o--
A tempestade, pelo menos,
serviu para alguma coisa: aproveitei os balanços laterais para dançar rock and
roll. Caía para um lado dando os passinhos e voltinhas, espalmando uma viga da antepara para lá e para cá.
Quando voltou a calmaria, usei a porta do camarote como parceira. Foi nos
Seamenʼs Club alemão que confirmei a eficiência do método.
Por incrível que pareça, 70 horas
após o primeiro balanço, o mar acalmou de repente, a voltamos à navegação
normal.
Após atracar no cais do Brooklin, em Nova York , e abarrotar o
gigantesco armazém 12 com 120.000 sacas de café, fomos conduzidos a um
estaleiro para inspeção dos estragos. Doze vaus, as costelas do navio, tiveram
que ser re-soldados. Nesse ponto, o mar assemelha-se a uma sucuri. A cobra
enrosca-se na presa e vai apertando e triturando seus ossos antes de engoli-la.
O mar vai estalando a soldas da estrutura até quebrar de vez. Não poderia ser
mais tenebroso o local dessa refrega: o Triângulo das Bermudas.
Escapamos por pouco.
--o--
Soube, depois, que um marinheiro
entrou em um bordel em Recife caminhando com as pernas abertas, quando “uma
profissional” o interpelou:
- Bichinho,
pruquê tu anda com essas pernas arcada parecendo uma gambá?
- Tu não tá vendo que eu
sou marujo? Tenho 20 anos de mar, e, devido aos balanços, fiquei viciado.
E ela:
- Vige! Não seja por isso.
Eu tenho mais de 30 anos aqui na zona e nem por isso ando tremelicando e
dizendo “Ai, meu amorzinho, ai, meu amorzinho...”.
--o--
Até a próxima tempestade...
J.C. Aranha
* Lloyd Brasileiro (Companhia de
Navegação Lloyd Brasileiro) foi uma companhia estatal de navegação brasileira,
fundada em 19 de fevereiro de 1890, no ano seguinte a
Proclamação da República, durante o governo do marechal Deodoro da Fonseca. A empresa foi extinta em
outubro de 1997, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso com o objetivo
de encerrar o crescente endividamento da empresa.
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