A exigência de sentidos únicos na arte é eterna forma
de censura
Por José Francisco
Botelho
(Weberson
Santiago/VEJA)
Em 31 de janeiro de 1857, o público
parisiense lotou a Sexta Corte do Tribunal Correcional do Sena para assistir ao
espetacular julgamento de Gustave Flaubert − descrito nos autos simplesmente
como homme de lettres. Nos meses anteriores, Flaubert publicara Madame Bovary em
capítulos na Revue de Paris. Escrito em estilo impessoal e verbalmente justo, o
extraordinário romance conta a história de uma jovem provinciana que,
perturbada por leituras românticas, trai o marido repetidas vezes, leva-o à
ruína financeira e comete o mais célebre suicídio da literatura ocidental.
Escandalizado, o Ministério Público processou Flaubert por “ofensa à moral
pública e à religião”. A transcrição do julgamento (que projetou à fama o até
então obscuro escritor) fornece ainda hoje uma leitura fascinante e didática:
ensina, pelo exemplo negativo, o que não se deve exigir de uma obra literária.
O promotor do caso, maître Ernest
Pinard, acusou Flaubert de simpatizar com os pecados da protagonista em vez de
condená-los abertamente. “Se, em todo o romance, não há um único personagem que
possa fazer a protagonista curvar a cabeça, se não há no texto uma única ideia,
uma única linha que repreenda o adultério, então o livro é imoral”, esbravejou.
Já o advogado de defesa, num discurso que durou quatro horas, argumentou que o
sentido do livro era exatamente o contrário: “O estímulo à virtude pelo horror
do vício”. O tribunal absolveu o réu no dia 7 de fevereiro, com uma
advertência: “Há certos limites que a literatura, mesmo a mais leviana, não
deve ultrapassar, coisa que o autor parece ter esquecido”. E a disputa sobre o
sentido do romance perdura: Madame Bovary já foi lido como defesa trágica da
emancipação feminina, como fantasia inquisitorial misógina e várias outras
coisas. Afinal de contas, o que monsieur Flaubert, homme de lettres, queria
dizer com seu livro?
Sou da opinião de que as intenções de um autor
só interessam como curiosidade arqueológica; quanto a significados finais,
sempre vale lembrar o que Umberto Eco afirmou em Obra Aberta (1962): a
multiplicidade de sentidos possíveis é característica de toda grande arte. Sob
esse ponto de vista, também a defesa de Flaubert estava equivocada: se o
romance fosse apenas um “estímulo à virtude pelo horror do vício”, não teria se
convertido em uma das obras literárias mais reinterpretadas na história.
Como seria, hoje, o julgamento de
Flaubert? A pergunta é metafórica, mas não ociosa. Ao acompanhar certos
frenesis da cultura contemporânea, sinto que estamos de volta à Sexta Corte do
Sena: a obsessão por sentidos unívocos, o horror à ambiguidade e a exigência de
adesão a postulados políticos monolíticos é uma ameaça tão grande à imaginação
humana quanto a chama das fogueiras. A Obra quer ser aberta, mas algo em nós
insiste em fechá-la; no tribunal dos séculos, prefiro repetir declaração de
Flaubert no banco dos réus (devidamente anotada por seu estenógrafo): “Não temo
senão as literaturas adocicadas que engolimos sem repugnância e que nos
envenenam sem escândalo”.
Publicado em VEJA de
13 de março de 2019, edição
nº 2625
Emma Bovary
Emma Bovary é uma das heroínas
mais abusadas do romance moderno. Não é o suficiente para ela perder a cabeça
apaixonada por um homem indigno; desperdiçar sua fortuna e sofrer o terror da
dívida crescente; e, finalmente, morrer em um suicídio prolongado e doloroso
pelo arsênico.
Gustave Flaubert
(1821-1880)
No dia 7 de fevereiro de 1857,
Gustave Flaubert foi absolvido da acusação contra seu livro Madame Bovary,
considerado imoral pelas autoridades francesas. Dias antes, Flaubert proferira
a célebre resposta à pergunta sobre quem seria Madame Bovary: “Emma Bovary
c’est moi” (Emma Bovary sou eu). Acusado de ofensa à moral e à religião, o
processo foi movido contra o autor e o editor Laurent Pichat, diretor da revista
Revue de Paris, onde a história foi publicada pela primeira vez, em episódios e
com cortes. Como costuma acontecer, quanto maior o escândalo, maior o interesse
provocado nos leitores, que adquirem a obra, que já era notável, movidos pelo
sabor do escândalo.
A Sexta Corte Correcional do
Tribunal do Sena absolveu Flaubert, mas certo puritanismo da época condenou o
autor. Muitos críticos não perdoaram Flaubert pelo cru realismo dado ao tema do
adultério, pela crítica ao clero e à burguesia. Muitos clássicos da literatura
foram condenados pelos contemporâneos. Talvez os casos mais famosos sejam os de
Ulysses de Joyce e de Lolita de Nabokov, por exemplo, que foram censurados por
ofenderem a moral vigente. Seriam pornográficos.
(Excerto do texto de
Milton Ribeiro)
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