quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O Rio Grande do Sul a um passo da guerra civil

 Em agosto de 1961, o Palácio Piratini foi transformado em trincheira contra o golpe, em uma insurreição liderada pelo então governador Leonel Brizola. 

Por Gilson Camargo / Publicado em 24 de agosto de 2011

Insurgente: Brizola liderou movimento pela posse do vice-presidente

Foto: Gil Pinheiro / Fatos & Fotos / Reprodução 

A mobilização, batizada de Campanha da Legalidade, alusão ao texto constitucional que determina a posse do vice no caso de renúncia ou impedimento do presidente, começou no movimento estudantil, no Colégio Julho de Castilhos, o Julinho, no dia 25 de agosto, e assumiu a proporção de uma guerra civil. Apesar das tensões e do teatro de guerra, nenhum tiro chegou a ser disparado, pois a repercussão do Movimento – transmitido pelas 104 emissoras da Cadeia de Rádios da Legalidade – levou a cúpula militar do país a recuar, em setembro, aceitando a posse de Jango. Os poderes do presidente, no entanto, foram limitados por um inusitado sistema Parlamentarista – que seria derrubado com o golpe de 1964. 

Cunhado de Brizola, Jango retornava de uma viagem à China quando Jânio Quadros renunciou. Acuado pela oposição em maioria e acusado de tentativa de golpe pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda, o histriônico Quadros imaginou um retorno ao poder nos braços do povo. Sua identificação com a esquerda – condecorou Che Guevara, o que irritou conservadores – e o fato de Jango ser do PTB, herdeiro do populista Getúlio Vargas, foram pretextos de sobra para o veto dos militares à posse do vice. A tentativa de golpe deflagrou o Movimento da Legalidade, “… uma rebelião para restaurar a lei e a ordem, que tinham sido desfeitas pelo poder político-militar em Brasília”, conforme definição do jornalista Flávio Tavares, coordenador da equipe que redigiu nos porões do Palácio a edição extra do jornal Última Hora que lançou o movimento. 

Armas velhas e enferrujadas

No interior do estado, caminhões e trens foram confiscados para o transporte de soldados da Brigada Militar para a capital depois que o III Exército recebeu ordens do ministro da Guerra, Odílio Denys, para bombardear a sede do governo gaúcho e “eliminar o governador e quem estiver com ele”. Entrincheirado no Palácio, onde foram montadas barricadas com sacos de areia e brigadianos armados de metralhadoras ficaram de prontidão nas torres do prédio, Brizola montou um estúdio de rádio após confiscar equipamentos da Rádio Guaíba. Com transmissões dramáticas, nas quais declarava a disposição de defender com a própria vida a posse de Jango e a Constituição, o governador comoveu milhares de populares, que se deslocaram para as imediações do Palácio e permaneceram em vigília. “Não nos submeteremos a nenhum golpe, a morte é melhor que a vida sem dignidade”, desafiava pelos microfones madrugada adentro. 

A ordem era revidar no caso de uma investida militar. Revólveres calibre 38 confiscados de uma fábrica de armas de São Leopoldo foram distribuídos à população e aos jornalistas, e velhas metralhadoras encontrada pela Brigada Militar no Palácio passaram a ser ostentadas. O armamento fora contrabandeado da Tchecoslováquia pelo general Flores da Cunha, que governara o estado de 1930 a 1937. De tão velhas e enferrujadas, as armas disparavam um cada três ou quatro tiros, relata a jornalista Dione Kuhn no livro Brizola – da Legalidade ao Exílio (2004). “Recebi um revólver com uma argola para atar nos tentos e três balas. Em que baita guerra estava metido!”, ironiza Antônio Carlos Porto em depoimento a Joaquim Felizardo no livro “A Legalidade – Último levante gaúcho” (1988). Os jatos equipados com bombas, no entanto, nem chegaram a decolar da Base Aérea de Canoas, onde foram sabotados por soldados e oficiais. Um destacamento de blindados chegou a ser deslocado do bairro Serraria, mas também recuou. O general João Machado Lopes, comandante do III Exército, não só desacatou a ordem para atacar o Palácio como aderiu ao Movimento. 

O papel dos estudantes 

O advogado Natale Ferrari, 77 anos, tinha 25 quando começaram a chegar a Porto Alegre as primeiras informações sobre o veto dos militares à posse de Jango – prenunciando a crise. Líder estudantil, ele havia presidido o Grêmio do Colégio Julho de Castilhos em 1959 e 1960, mas não concorreu em 1961, pois decidira ser advogado. Foi chamado em casa para uma assembleia que definiria a mobilização dos estudantes. “O movimento estudantil do Julinho tinha uma força enorme, muita influência política. Quando cheguei, havia um mar de estudantes. Subi numa plataforma e disse: ‘vamos fazer o que sempre fizemos, vamos para as ruas, vamos tomar as providências para manter a legalidade’”, relata. A passeata começou com 2 mil estudantes e já somava mais de 10 mil quando chegou em frente à Prefeitura. No trajeto, alunos da Ufrgs e populares se juntaram. “Procuramos o prefeito Loureiro Chaves, que tinha prestígio na época, muito mais que o Brizola. Mas ele recuou diante da massa. Disse que devíamos esperar. Foi uma decepção”. Com a recusa de Loureiro, que depois se refugiaria na Cúria Metropolitana com Paulo Brossard e outros desafetos de Brizola, o Movimento seguiu para o Palácio Farroupilha. De uma das janelas do prédio, Ferrari fez um discurso em defesa da Constituição, sendo recebido por Brizola. “Eu estava sobre o parapeito de uma janela e senti que os vidros se abriram às minhas costas. Uma mão me tocou no ombro e me virei. Era o Brizola. Ele falou baixinho: ‘tu estás indo muito bem, continua’. Em seguida tomou a palavra e fez um discurso emocionante, assumindo o controle daquela massa e do Movimento da Legalidade. Isso já era tarde da noite de 25 de agosto. A Legalidade, portanto, nasceu no Julinho. Essa mobilização começou com os estudantes”, enfatiza. 

A história em imagens

Jango, Brizola e o general Lopes, que desobedeceu ordens e aderiu

Foto: Acervo Museu Hipólito José da Costa / reprodução 

O repórter fotográfico e professor da Unisc, Cláudio Fachel, 52 anos, autor do livro Fotojornalismo, Legalidade e Última Hora (Ed. Medianiz, 136 páginas), destaca que o trabalho dos repórteres fotográficos foi decisivo, pois a censura aos meios de comunicação e o discurso anticomunista vigente dificultavam a comunicação. “Numa perspectiva histórica, os fotógrafos da Legalidade foram heróis porque desconstruíram esse discurso através da crueza das imagens, mostrando sem cortes o contexto do Movimento, a importância de resistir ao golpe e fazer valer a Constituição”, analisa Fachel. Para o jornalista Carlos Bastos, 77 anos, que cobriu o episódio como repórter de política do jornal Última Hora, a Legalidade foi o último levante dos gaúchos e talvez a mais significativa demonstração do poder de mobilização popular que o rádio tinha à época. “Um episódio tão forte, tão apaixonante, que nenhum jornalista conseguiu manter a isenção, inclusive os mais de 400 repórteres credenciados pelo Palácio, na sua maioria correspondentes internacionais, que transmitiam boletins emocionados a todo momento”, recorda Bastos. 

(Do jornal Extra Classe, 24 de agosto de 2011)

Grito pela democracia nas ondas do rádio

“Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste palácio, numa demonstração de protesto contra esta loucura e este desatino. Venham, e se eles quiserem cometer esta chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. 

Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. 

Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo! 

Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever.” 

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Assim termina o discurso de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, no dia 28 de agosto de 1961, na campanha da Legalidade. Movimento liderado por Brizola que assegurou a posse do vice-presidente João Goulart, o Jango, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961.

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