Nestor de Holanda
Zé nasceu no Dia dos Mortos. Ainda no Todos os Santos, a mãe lhe sentiu as primeiras dores, mas ele esperou pelo Finados, para vir ao mundo. A família e os vizinhos queriam Maria; nasceu Zé. Pior ainda: ia ser Maria José e foi José Maria. Um tio desavisado levou-lhe uma boneca que dizia ‘mamãe’. Zé guardou a boneca por muito tempo. Era um conservador.
Quem começou a vida assim, devia ter sido muito pacato. Mas, não. Zé mostrou quem era, logo no Finados em que completou o primeiro aniversário. Puxou a toalha da mesa e atirou no chão todos os bolos confeccionados pelas tias, para a comemoração. Quando a mãe entrou na sala e perguntou quem fizera aquilo, o pai respondeu:
− Foi o Zé!
Desde então, a frase ‘Foi o Zé!’ ficou pronunciada, anos e anos seguidos. Estendeu-se pela cidade e atravessou fronteiras. Quando morreu um canário de briga, não foi o gato: foi o Zé! Começou matando passarinhos. Aos oito anos, passou a matar pombos. Aos doze, já preferia galinhas. No Finados de seus quinze anos, foi quem derrubou o peru, com uma pedrada. Tudo o que aconteceu de mal, na pequena cidade, desde que o pai pronunciou a frase pela primeira vez, foi o Zé.
Na escola apelidaram o globo de ‘América’. Por mais que a professora explicasse que aquela bola representava o mundo, os meninos chamavam a bola de ‘América’. O globo estava sempre coberto com uma flanela amarela, bordada com linhas vermelhas. No dia em que a flanela desapareceu, a professora não notou. Mas, na aula, por acaso, fez, a um Pedrinho, a clássica pergunta:
− Quem descobriu a América? E o Pedrinho, delator contumaz, respondeu, sem vacilar:
− Foi o Zé!
De outra feita, arranjou um pedaço de arame e resolveu, no recreio, brincar de vacinação. Furou o braço de todos os meninos, como se os estivesse vacinando, de verdade. E o resultado foi que a estória se repetiu: quando, na aula, a professora perguntou quem havia inventado a vacina, o mesmo Pedrinho fez nova delação:
− Foi o Zé!
Casou – isto é: casaram-no. No Dia de Todos os Santos, nasceu Maria José, menina loura, meiga, acomodada. Mas, já então, o descobridor da América e inventor da vacina estava preso, em outra comarca, cumprindo pena pelo crime de homicídio premeditado. Porque aquele saudoso Pedrinho apareceu baleado. O coronel, meio surdo, que o encontrou já moribundo, quis saber como foi:
− Atiraram de tocaia? O agonizante confirmou:
− Pois é! Disse isso e morreu. Com a língua enrolada, já nos estertores finais, seu ‘pois é’ saiu muito parecido com o ‘foi o Zé’. E a denúncia se fez...
Não sei se esta rápida tragédia serve para mostrar aos pais que, às vezes, eles são culpados de os filhos acabarem na cadeia. O criador de nosso herói, por exemplo, foi o criador (também) da frase que o perseguiu. E tanto mal causou que, neste momento, estou recebendo carta, na qual me informam que um condenado se suicidou, no Dia de Finados:
− Foi o Zé!”
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Do escritor pernambucano Nestor de Holanda, no seu livro de crônicas “Gente Engraçada”, publicado pelas Edições de Ouro, Rio de Janeiro, em 1962.
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