Diante de uma criança
Carlos Drummond de
Andrade
Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual
vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?
Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?
Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?
Submeter-se à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?
E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?
Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?
Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.
Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.
Porque amamos os nossos filhos
Carlos Drummond de Andrade
Ignacinho veio pedir-me uma vitrola
como presente do seu próximo aniversário. Os últimos acontecimentos não são de
molde a justificar essa pretensão do meu querido filho e companheiro. Presentes
de aniversário dão-se a meninos bem comportados, que não trocam as aulas pelo
futebol, nem as vigílias do estudo pelas do cinema. Ora Ignacinho tem sido
justamente o contrario desse tipo de jovem exemplar, que é muito comum no
“Coração” de Edmundo de Amicis e outros livros estrangeiros, mas que
infelizmente não parece ter-se dado bem com o clima do Brasil. Como pois
solicitar-me festas?
E daí Ignacinho não é mais uma
criança. Membro do conselho fiscal do Centro dos Preparatorianos e colaborador
das páginas de anúncio (as únicas que prestam) do “Fonfon” e do “Para Todos”,
ele adquiriu já uma personalidade social e literária que não se coadunava com
as calças curtas nem com as regalias conferidas aos frangotes de 13 anos.
Rapazinho de calça comprida não tem direito a mimos infantis. Sócio do Centro
dos Preparatorianos também não tem. Poeta ou prosador ainda que incipiente,
também não.
Fiz ver todas essas coisas a
Ignacinho. Sem ferocidade, palavra. Minha intenção era feri-lo no seu
orgulhosinho púbere, de modo que ele renunciasse ostensivamente à vitrola,
poupando-me a dor de recusá-la. Eu sou feito do mesmo barro de que se fazem
todos os pais, e às vezes meu coração amolece nos momentos mais sérios. Em
minha consciência achava que Ignacinho não tinha direito à maquina falante. Mas
e coragem para dizê-lo?
Ignacinho, achando fúteis as
minhas razões, reforçou o pedido com a promessa de dois belíssimos exames
parcelados no Ginásio. Era vitrola para lá, exames para cá. Se eu fechasse o
negócio, ele capricharia nas escritas e se excederia nas orais. Adverti-lhe de
que não faria mais do que a sua estrita obrigação, prestando bons exames das
humanidades (ele diz “desumanidades”) que se não estudara, devia ter estudado a
fundo.
Mas intimamente, e sem cálculo,
eu já tinha cedido um pouco.
Ignacinho prometeu mais. Prometeu
ótimo comportamento durante as férias, e infatigável aplicação durante o
próximo ano letivo. Em todos os futuros anos letivos. Na Faculdade de Medicina,
até o 6º ano, seria o modelo dos candidatos a mortícola*. E na vida prática —
Ignacinho nesse momento chegou a pensar na vida prática — seria o mortícola
mais brilhante da sua geração, do seu país, do seu continente, do mundo. E tudo
isso por um preço tão pequeno! O preço de uma vitrola Decca, das menores...
Antes que o rapaz me prometesse
maiores absurdos, eu, desarmado, fiz como Capablanca: entreguei-lhe os pontos. Mas
frisei bem: não contasse comigo na hora de comprar os discos.
O capetinha deu uma gargalhada e
confessou, cínico:
− Não precisa não, papai. Os
discos eu já tenho. Mamãe me deu. Eu falei com ela que o senhor tinha me dado a
vitrola...
Astúcia, teimosia e senso comercial
da alma infantil! Ignacinho explorou-me duplamente, é certo, pois pelo menos aqui
no sertão, quem paga os presentes da mulher é o marido. Mas não são essas
pequeninas coisas que nos fazem amar os nossos queridos filhos?
(Da Revista de
Antropofagia número 2, junho de 1928)
*mortícula, diz-se de um mau médico, que mata os doentes por
inépcia.
Lindo, lindo.
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