Humberto de Campos
A vida de Mariano Pereira Barbosa
corria serena, sem preocupações, sem sustos, sem contrariedades, quando o
destino lhe pôs no caminho aquela armadilha: uma luta do João Salomão, celerado
destemido, com o barbeiro Felisberto Sampaio do “Salão Fluminense”. Mais forte
que o outro, Salomão conseguira desarmar o adversário, passando-lhe a própria
navalha, depois, cinco vezes pelo peito, pela barriga, pelas espáduas, pelo
pescoço. Arrolado como testemunha, Mariano fez enorme carga ao criminoso. E de
tal forma que este, ao receber a sentença de quatro anos de prisão, se voltou
no banco dos réus para o seu acusador, ameaçando-o, olhos fuzilantes, a mão
aberta no seu rumo:
− Deixa-te estar. Quando eu sair, tu
me pagas.
Anos depois, ia Mariano para seu
emprego no Ministério da Justiça, quando, ao passar o bonde pela praça da
República, viu, parado a um canto da rua, um indivíduo que não lhe parecia
estranho. Atentou melhor e estremeceu: era o João Salomão, o agressor de
Felisberto. Ao dar com os olhos no passageiro, Salomão reconheceu-o também, e,
cara fechada, mordendo o beiço, avançou para o bonde. O veículo já ia, porém,
em marcha acelerada, devendo o pacífico funcionário ministerial a essa
circunstância não ter, desde logo, ajustado contas com o valentão.
Ao fim de dois dias, novo encontro.
Caminhava Mariano pela Avenida Passos, quando viu, quase desembocando da rua
General Câmara, o brutamontes que o seu testemunho havia levado à prisão. Ao
divisá-lo, Salomão acelerou o passo. Tal foi, porém, o pavor que se apossou do
pobre rapaz, que, quando o valentaço chegou á esquina, já havia ele dobrado,
meio quilômetro adiante, a rua da Constituição.
A partir desse dia não teve o honrado
burocrata um só momento de sossego. A cada canto de rua levava a mão ao peito,
pálido, o coração aos pulos, vendo em cada indivíduo corpulento o fantasma do
ferrabrás. E era trêmulo, nervoso, agitado, que exclamou, um dia, ao entrar em
casa:
− Não, isto não pode continuar! Isto
tem que ser liquidado, de uma vez!
− Acaba logo com isso, Mariano!
Observou-lhe a esposa, Dona Ritinha, incomodada com aquela situação. − Compra
um revólver e dá-lhe uma lição. Isto não é vida. Demais, tu não tens culpa: é
ele que anda te perseguindo.
Bom marido, obediente às razoes da
mulher, Mariano comprou a arma. Era um “Smith Wessson” de bom calibre, cabo de
madrepérola, adquirido a prestações por quatrocentos e setenta mil réis. Como
preço, era caro; tratando-se, porém, da sua tranquilidade, do extermínio
daquele terrível pesadelo, o rapaz não olhara despesa. A paz da sua vida valia
incomparavelmente mais.
Dois dias após a aquisição do
revólver, estava Dona Ritinha no interior da casa, quando parou ao portão um
automóvel. Correu a abrir, e recuou: era Mariano que chegava, sem chapéu, rosto
vermelho, cabelo alvoroçado, paletó em frangalhos, camisa sem botões, colarinho
para um lado, gravata para outro.
− Que é isso, Mariano? Que foi meu
Deus?... exclamou a pobre senhora, aflita, torcendo as mãos.
Mariano quase não podia falar. Fez,
porém, um esforço, e informou, cortando as palavras:
− Está tudo... liquidado!...
Estamos... quites!
− Mataste-o?... − gritou a
desgraçada, recuando, os olhos fora das órbitas.
− Não! − informou o marido, ansiado.
E abanando-se com a mão, sem fôlego:
− Já apanhei!
*****
(Do livro “A Bacia de
Pilatos”, de Humberto de Campos)
Humberto de Campos (Humberto de
Campos Veras), jornalista, crítico, contista e memorialista, nasceu em
Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no
Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934.
Terceiro ocupante da Cadeira 20,
eleito em 30 de outubro de 1919, na sucessão de Emílio de Menezes e recebido
pelo Acadêmico Luís Murat em 8 de maio de 1920.
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