Pintura de Voldinei B. Lucas
Na porteira
Primeiras horas da tarde, em algum
lugar no interior do Rio Grande do Sul. Meio milhar de pessoas, entre homens,
mulheres e crianças, mesclam a indumentária típica do gaúcho à indumentária
contemporânea. À sombra dos cinamomos, cavalos aperados. Veículos automotores
aqui e ali, capotas reluzindo ao sol. Numa barraca improvisada vendem-se
bebidas, bolos, doces e pastéis. É em maio, num domingo.
Passam a meio galope, ao longo dos
trilhos abertos no campo raso e plano, os parelheiros que vão disputar a
carreira grande. Iniciam-se as apostas, com dinheiro passando das mãos dos
apostadores para as de um terceiro, de mútua confiança:
− Cinquenta mil réis no zaino!
− Topo, seu!
− Mais vinte que me sobram!
− É comigo mesmo! E tá casado!
Os corredores ensaiam as primeiras
partidas na cabeceira da cancha. Espertos, aguardam o momento propício para a
largada que lhes favoreça, levando vantagem já no primeiro pulo.
Dez, quinze, vinte minutos... A expectativa aumenta, enquanto as últimas
apostas são fechadas. Há gente que já dá luz no zaino. Outros, mais
apaixonados, luz e doble. Inquietam-se os aficcionados, olhos e corações
ligados ao movimento nervoso dos cavalos. O juiz de largada, atento às
investidas dos corredores até a baliza de partida, baixa de repente e num golpe
rápido o lenço branco amarrado ao cabo de um relhador:
− Vaaá!!!
Seu grito perde-se na polvadeira dos
cavalos que arrancam, some-se no grito maior, uníssono e instantâneo que brota
da alma para os lábios dos assistentes:
Já se vieram!!!
Perde-se no tempo e no espaço o eco
deste grito − síntese humanizada da paixão pela carreira de cavalos.
Desde quando? De onde? Por que
caminhos, terras e mares teria chegado a carreira a esta cancha-reta perdida
num rincão longínquo da fronteira gaúcha, onde homens e mulheres empolgam-se ao
espetáculo da disputa em velocidade entre dois cavalos e à paixão pelo jogo?
(Do livro “Já se
vieram!”, de Apparício Silva Rillo)
Uma estória*
As estórias, os causos, as mentiras e
os relatos fantasiosos ou verdadeiros são parte saborosa do folclore da
carreira.
Na maioria delas, especialmente na
região do Estado que se limita com Argentina e Uruguai, a figura do
“castelhano” esperto, valente, calaveira, destabocado ou covardão − conforme o
causo, está quase sempre presente, como personagem principal ou acessória,
herói ou vilão. Do mesmo modo a figura do “negro”, ora levando vantagens, ora
perdendo.
Mas tantos são as estórias e os
causos onde essas figuras são parte, que apenas registramos o detalhe como
curiosidade.
Dentre as tantas que correm no meio
dos aficcionados, conteremos a que nos parece a mais tradicional delas, de
maior curso popular e que, ouvida em que zona for e de boca de quem for,
conserva sempre as mesmas linhas mestras − variando apenas o local ou o
município em que o contador a situa.
− Diz que há muito tempo, pras bandas
do Garupá, viveram, lindeiros de campo, dois estancieiros muito ricos. Ambos,
igualmente, aficcionados aos parelheiros, tendo sempre na estaca vários animais
de qualidade. E, dentre eles, em certo tempo, cada um teve um parelheiro de
alta exceção. Ambos, pelas canchas onde cotejaram, até além das fronteiras, não
souberam jamais o que fosse perder. Imbatíveis, ambos, mas jamais haviam se
encontrado na mesma cancha, não desejando, nenhum dos donos, arriscar a fama de
seu cavalo contra contendor reconhecidamente poderoso.
Mas bueno, tanto foi, tanto se
comentou do mútuo receio que abrigavam os dois vizinhos e, sobretudo, por não
encontrarem mais cavalo algum, de parte alguma, que viesse medir pata com os
seus, que resolveram, certa feita, atar uma carreira entre seus celebrados
campeões.
Marcou-se prazo, local, parada e
condições de largada. E, num pacto de honra, ficou firmado que o parelheiro que
perdesse a carreira seria sacrificado pelo dono... E mais uma condição, que
ambos se impuseram por respeito mútuo: a carreira seria julgada por eles
próprios, sem intervenção de mais ninguém, nem mesmo da autoridade.
E chegou o dia do esperado encontro.
Miles de pessoas na cancha preparada, gente chegada de muitas léguas,
“comércio” como nunca se viu naquelas bandas.
Subiram para a cabeceira da cancha os
dois campeões, lindos como figura de livro, na ponta dos cascos, músculos
firmes, narinas abertas, orelhas em pé.
Para a baliza de chegada, ao passito
no más, os dois vizinhos, sérios, cada qual pro seu lado, a pistola pronta para
sacrifício do parelheiro que perdesse.
E a carreira estourou. E se vieram juntos,
batendo orelhas, fazendo rufar o chão ao compasso rápido dos cascos. Na última
meia quadra o zaino livrou cabeça sobre o douradilho, conservou a vantagem e
venceu a carreira.
Tensos, mas atentos, os estancieiros
− veteranos no julgamento de carreiras decididas por mínima vantagem, e,
sobretudo, honrando acima de tudo a palavra mutuamente empenhada, gritaram no
mesmo tempo o resultado:
− Le ganhei, vizinho!
− Me ganhou, vizinho!
− Le ganhei, vizinho!! − gritou ainda
mais alto o dono do zaino vencedor.
− Me ganhou, vizinho!! − repetiu ainda
com mais força o fazendeiro perdedor.
A gritaria do povaréu que vinha se
despencando em direção à baliza de chegada abafava os cada vez mais fortes e
repetidos: − le ganhei, vizinho!! e − Me ganhou, vizinho!!
Concordando ambos, desde o primeiro
grito, mas tomado um pela emoção da vitória e o outro pelo desespero da
derrota, não se entenderam nunca − achando o que gritava vitória que o vizinho
também a gritava.
Pistolas à mão, furibundos, avançaram
um de encontro ao outro. Berraram quase boca a boca uma última vez:
− Le ganhei, vizinho!!!
− Me ganhou, vizinho!!!
A explosão de dois tiros, o espanto
do povo, os parelheiros que voltavam a galope. E a queda lenta dos dois tauras,
os palas brancos manchados de um vermelho que se abria como a flor colorada das
corticeiras do arroio.
E houve alguém que ainda ouviu, de
uma e outra boca sufocada pelo sangue, a sentença final de dois homens de
honra:
− Le ganhei... vizinho...
− Me... ganhou... vizinho...
Arremate
Quanta coisa a contar ainda sobre as
carreiras! Das antigas canchas, dos célebres parelheiros, do corredor anão que
vestia à inglesa, da petiça que nunca encontrou parelha, mesmo dentre os mais
afamados parelheiros de uma outra banda do rio Uruguai, dos matungos que
correram carreiras por maços de rapadura, dos guris que enfrenavam cavalos de
taquara para pegadas de mentira na cancha limpa dos campestres de mato.
Mas outros como nós, hoje ou mais
tarde, haverão de melhor contar o que deixamos.
E fique, como arremate final, quando
se fecha a porteira que se abriu quando chegamos, esta quase paródia de um
adágio mais conhecido do que o nome João:
− Enquanto égua der cria, há de viver
a cancha-reta...
(Do livro “Já se vieram!”, de Apparício Silva Rillo)
*No dicionário Houaiss, “estória”
data-se do século XIII e é o mesmo que “história”: narrativa de cunho popular e
tradicional; história. Etimologicamente, ou seja, na origem, provém da forma
inglesa “story”: narrativa, em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo
de divertir/instruir o leitor, da forma latina “historia,ae”.
A questão é simples: a grafia
“estória” é forma arcaica da própria Língua Portuguesa. Na época medieval,
“estória” existiu ao lado de “istória”, quando ainda não havia grafia
uniformizada para os nossos vocábulos – com invenções distintivas de
significado. Houve ainda a forma intermediária “hestoria”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário