segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Retorno Bravo

 Ubirajara Raffo Constant

Ali na porta do rancho, junto ao cusquito nervoso,

o velho guasca orgulhoso olhava o filho partir.

Também desejava ir com a mesma disposição,

levando a lança na mão, pra se unir aos farroupilhas

e pelear pelas coxilhas em defesa do rincão.

 

Porém já velho e arquejado perdera a força no braço,

tinha no lombo o cansaço do peso de muitos anos,

mas era um dos veteranos com orgulho do passado,

por ter a lança empunhado combatendo os castelhanos.

 

Que gana tinha de ir, aquele velho guerreiro,

de novo para o entrevero como gaúcho pelear,

mas ficava a se orgulhar que embora velho e cansado

tinha um filho já criado partindo no seu lugar.

 

E ali na porta do rancho, cheio de orgulho e pesar,

viu o filho se afastar com garbo e disposição,

montando um flor de alazão, o laço preso nos tentos,

o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão.

 

Depois, com a estrada deserta, a noite foi se chegando,

o pampa foi silenciando nas grotas e nos banhados,

e o velho guasca cansado no catre foi se arriando,

em silêncio, memoriando, entreveros do passado.

 

Assim, a poeira dos dias cobriu o catre vazio

do paisano que partiu do rancho para a guerrilha,

levando na alma caudilha de guasca continentino,

a fibra, a glória e o tino de campeador farroupilha.

 

Já muitos dias depois, um xiru trouxe a notícia:

− A farroupilha milícia, em que seu filho marchou,

peleando se dizimou. Morreram mas não recuaram

e entre os bravos que tombaram dizem que o moço tombou.

 

Num sentimento profundo, o velho ficou calado,

mas o seu rosto enrugado não pode a dor esconder,

deixando livre correr, do fundo da alma ferida,

uma lágrima sentida que ele não pode conter.

 

Tristonha caiu a noite e mais triste a madrugada.

Latia ao longe a cuscada, nas quinchas gemia o vento,

e sem dormir um momento, ali no catre estirado,

o velho ficou atado na soga do pensamento.

 

Lembrou o filho em criança correndo o pampa em retoço,

a melena em alvoroço soprada ao vento pampeano.

Recordou ano por ano até que o piá ficou moço

e ali da porta do rancho partiu pra revolução,

montando um flor de alazão, o laço preso nos tentos,

o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão.

 

Estava assim recordando, quando lá fora um gemido

lhe fez apurar o ouvido e despertar-lhe a atenção.

E quando ouviu uma mão, naquela hora tão morta,

forcejar de encontro a porta como querendo arrombá-la,

sua visão ficou clara, voltando-lhe a luz e o brilho;

num ímpeto caudilho a porta abriu com vigor

e estarreceu-se de horror ante a figura do filho.

 

Cambaleante, ensanguentado,

as vestes feitas em frangalhos,

o corpo cheio de talhos dobrado pelo cansaço,

já sem força em nenhum braço, já sem poder ver direito,

e com o meio do peito aberto por um lançaço.

 

Fitando os olhos do filho, o velho ficou calado.

Estarrecido, espantado, vendo-o ali em sua frente.

Então gritou gravemente: − Meu filho, por que voltaste?

Por quê? Por que não tombaste onde tombou nossa gente?

Maldito sejas, covarde, tu já não és mais meu filho!

Não tens o sangue caudilho, não aguentaste o repuxo,

deixaste teus companheiros, fugiste dos entreveros,

tu já não és mais gaúcho!

 

Então, a face do guasca, que peleando não tombou,

como um lançaço estampou a ira do coração.

Prostrando-se rudemente, naquele gesto inclemente,

desfalecido no chão, o moço sentindo a morte

roubar-lhe o sopro da vida, com a alma triste e ferida,

ali prostrado no chão, sem rancor no coração

olhou para o pai a seu lado, e já num último brado

fez a brava confissão:

 

− Meu pai, eu não fui covarde,

honrei meu poncho e minha adaga,

fiquei coberto de chagas, mas aguentei o repuxo.

Fui valente, fui gaúcho, peleei com todo o ardor,

e se aqui vim escondido foi pra salvar do inimigo

o pavilhão tricolor.

 

Abrindo a camisa ao peito, tirou em sangue banhado

aquele trapo sagrado que até o fim defendeu,

e beijando-o estendeu ao pai, num último esforço,

e depois, curvando o dorso, o bravo guasca morreu...

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