Ubirajara Raffo Constant
Ali na porta do rancho, junto
ao cusquito nervoso,
o velho guasca orgulhoso
olhava o filho partir.
Também desejava ir com a
mesma disposição,
levando a lança na mão, pra
se unir aos farroupilhas
e pelear pelas coxilhas em defesa do rincão.
Porém já velho e arquejado
perdera a força no braço,
tinha no lombo o cansaço do
peso de muitos anos,
mas era um dos veteranos com
orgulho do passado,
por ter a lança empunhado combatendo os castelhanos.
Que gana tinha de ir, aquele
velho guerreiro,
de novo para o entrevero como
gaúcho pelear,
mas ficava a se orgulhar que
embora velho e cansado
tinha um filho já criado partindo no seu lugar.
E ali na porta do rancho,
cheio de orgulho e pesar,
viu o filho se afastar com
garbo e disposição,
montando um flor de alazão, o
laço preso nos tentos,
o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão.
Depois, com a estrada
deserta, a noite foi se chegando,
o pampa foi silenciando nas
grotas e nos banhados,
e o velho guasca cansado no
catre foi se arriando,
em silêncio, memoriando, entreveros do passado.
Assim, a poeira dos dias
cobriu o catre vazio
do paisano que partiu do
rancho para a guerrilha,
levando na alma caudilha de
guasca continentino,
a fibra, a glória e o tino de campeador farroupilha.
Já muitos dias depois, um
xiru trouxe a notícia:
− A farroupilha milícia, em
que seu filho marchou,
peleando se dizimou. Morreram
mas não recuaram
e entre os bravos que tombaram dizem que o moço tombou.
Num sentimento profundo, o
velho ficou calado,
mas o seu rosto enrugado não
pode a dor esconder,
deixando livre correr, do
fundo da alma ferida,
uma lágrima sentida que ele não pode conter.
Tristonha caiu a noite e mais
triste a madrugada.
Latia ao longe a cuscada, nas
quinchas gemia o vento,
e sem dormir um momento, ali
no catre estirado,
o velho ficou atado na soga do pensamento.
Lembrou o filho em criança correndo
o pampa em retoço,
a melena em alvoroço soprada
ao vento pampeano.
Recordou ano por ano até que
o piá ficou moço
e ali da porta do rancho partiu
pra revolução,
montando um flor de alazão, o
laço preso nos tentos,
o poncho revoando ao vento e a lança firme na mão.
Estava assim recordando,
quando lá fora um gemido
lhe fez apurar o ouvido e
despertar-lhe a atenção.
E quando ouviu uma mão,
naquela hora tão morta,
forcejar de encontro a porta
como querendo arrombá-la,
sua visão ficou clara,
voltando-lhe a luz e o brilho;
num ímpeto caudilho a porta
abriu com vigor
e estarreceu-se de horror ante a figura do filho.
Cambaleante, ensanguentado,
as vestes feitas em
frangalhos,
o corpo cheio de talhos
dobrado pelo cansaço,
já sem força em nenhum braço,
já sem poder ver direito,
e com o meio do peito aberto por um lançaço.
Fitando os olhos do filho, o
velho ficou calado.
Estarrecido, espantado,
vendo-o ali em sua frente.
Então gritou gravemente: −
Meu filho, por que voltaste?
Por quê? Por que não tombaste
onde tombou nossa gente?
Maldito sejas, covarde, tu já
não és mais meu filho!
Não tens o sangue caudilho,
não aguentaste o repuxo,
deixaste teus companheiros,
fugiste dos entreveros,
tu já não és mais gaúcho!
Então, a face do guasca, que
peleando não tombou,
como um lançaço estampou a
ira do coração.
Prostrando-se rudemente,
naquele gesto inclemente,
desfalecido no chão, o moço
sentindo a morte
roubar-lhe o sopro da vida,
com a alma triste e ferida,
ali prostrado no chão, sem
rancor no coração
olhou para o pai a seu lado,
e já num último brado
fez a brava confissão:
− Meu pai, eu não fui
covarde,
honrei meu poncho e minha
adaga,
fiquei coberto de chagas, mas
aguentei o repuxo.
Fui valente, fui gaúcho,
peleei com todo o ardor,
e se aqui vim escondido foi pra
salvar do inimigo
o pavilhão tricolor.
Abrindo a camisa ao peito,
tirou em sangue banhado
aquele trapo sagrado que até
o fim defendeu,
e beijando-o estendeu ao pai,
num último esforço,
e depois, curvando o dorso, o
bravo guasca morreu...
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