sábado, 30 de setembro de 2023

A faca

 Paulo Roza

Imagem da internet 

Este lendário instrumento, entricheirado nas guaiacas, participa do cotidiano do homem do campo como se fosse um parceiro em suas jornadas. Foram tantas, que ficaram perpetuadas na história. São causos, contos e fatos, que relatados na penumbra dos candeeiros, provocam misturas de gargalhadas com lágrimas saudosas de um tempo já bem distante. 

Conténs uma simbologia única e distinta, tendo como pais os cuteleiros que te pariram a ferro e fogo, dando-te um caráter de bravura já em teu nascimento. Tendo a têmpera como perfil e sobre o abrasivo da pedra e da marreta, até que estejas devidamente desbastada e polida para poder cumprir as tarefas que te são impostas. Assim também é o homem, desbastado e polido ao longo da vida, até que seja distinguido para enfrentar os desafios da jornada. 

Dando-te um caráter de beleza, tens no punho a identidade, tantas vezes osso como símbolo da eternidade, outras tantas a madeira como representante da natureza e por vezes osso e madeira entremeados com anel, símbolo desta aliança. 

Na lida, és combatente na defesa de teu dono; nos tribunais és a materialidade, sendo a arma do crime; nos campos limpas a ramilha (parte do casco) do nobre amigo quando disponibilizamos teu dorso; nas areias das praias escreves poemas, indicas direções e caminhos. Sem perderes o rumo, vais esculpindo madeiras dando-lhes contorno e formas, pronta a adornares recantos. Longe da exaustão serves como bisturi rural, castras, cortas e aparas, e ainda impões o derradeiro destino ao animal que,  abatido e retalhado, vai dar sustento ao homem, fazendo cm que cada naco de carne possa ser repartido, tornando-se protagonista e símbolo plural das tarefas galponeiras. 

Na infância, limpamos bambus, fazemos caniços e alçamos pandorgas e pipas. 

Desafiando perigos, salvaste vidas, outras se perderam desafiando teu fio. 

Tornas-te símbolo de liberdade quando cortas amarras; marcas território quando cravada nos troncos; presa entre os dentes és um desafio ao oponente, mostrando singular coragem. 

Por onde andas, és apreciada e cortejada, pois és linda como adorno e, mesmo assim, sem perder a ternura, tens o lombo duro e a língua afiada. 

Mesmo adormecida na bainha, eu desejo que tu sejas, como sempre, nosso símbolo de coragem e de lutas, perpetuando pelas gerações futuras onde cada um possa escrever orgulhosamente a sua parte. 

Hoje és um mimo nas mãos do meu amigo, segues lonqueando os tentos de amizade, trançando laços fraternos, entre os homens de tua querência. 

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Parte do texto publicado no Almanaque Gaúcho, do jornal Zero Hora, setembro de 2023. 

Glossário: 

Guaiaca: cinto largo de couro ou de camurça, provido de bolsinho usado para se guardar dinheiro e objetos miúdos, e também para o porte de armas, como na foto acima, na frente da faca. 

Galponeiras: trabalho relativo a galpão. 

Pandorga: é como chamam no Sul a pipa, brinquedo aéreo das crianças. 

Lonqueando: preparando o couro, raspando todo o pelo que ele contém, a fim de o cortar, depois em tiras finas, para trabalhos de trança, como, por exemplo, laços, sogas, rebenques, etc. 

Querência: lugar de nascimento ou residência de uma pessoa. O mesmo que pago.

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