quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Cadeira vazia

 A música de Lupicínio Rodrigues 

Por: Urariano Mota

“Entra, meu amor, fica à vontade,
E diz com sinceridade
O que desejas de mim...”
 

As composições de Lupicínio Rodrigues representam uma das coisas mais ternas e violentas da música popular brasileira. Como ele consegue ser terno e violento ao mesmo tempo? Não é simples. Sobre um terreno de relações desiguais, do homem imperando sobre a mulher, de relações, portanto, violentas, Lupicínio constrói um mundo cheio de terna compreensão para o homem que ama. E que sofre, quando rejeitado, sem abdicar jamais de uma posição que se deseja altiva. 

“...Entra, pode entrar, a casa é tua,
Já te cansaste de viver na rua
E os teus sonhos chegaram ao fim.

Eu sofri demais, quando partiste,
Passei tantas horas triste,
Nem quero lembrar esse dia,

Mas de uma coisa podes ter certeza
O teu lugar aqui na minha mesa
Tua cadeira ainda está vazia...”
 

Observe-se, nesta música, que o amante jogado a um canto por outros, é afinal procurado pela mulher que o abandonou. Ela parece chegar de mansinho, meio envergonhada, sem ousar cruzar a porta da casa que não mais é sua. Para entrar, ela espera e precisa do convite do soberano, do soberano que, durante o tempo de abandono que tomou, assistiu de camarote às lições que a ingrata levou. Até não parece o recebimento de uma amorável cadela fugida? Coisa muito terna, mas desigual, em planos diferentes, pois a casa é dele, e ela é quem o procura. 

Então ele se faz paternal, concede, diz-lhe que entre, que a casa é sua, suaviza com um “meu amor”, para lhe mostrar que não é uma estranha. Poderia ainda dizer-lhe: “sei que erraste, mas como sou um bom pai, não insistirei nos teus erros”. 

“...Tu és a filha pródiga que volta
Procurando em minha porta
O que o mundo não te deu.

E faz de conta que sou teu paizinho,
Que tanto tempo aqui ficou sozinho,
A esperar por um carinho teu.

Voltaste, estás bem, estou contente,
Só me encontraste muito diferente,
Vou te falar de todo o coração:

Não te darei carinho nem afeto,
Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto,
Pra te alimentar, podes comer meu pão.”
 

À primeira vista há o prazer da vitória sobre quem o magoou, quase uma vingança. Por trás, no entanto, há um queixume de quem se acha ter amargado uma injusta solidão. Como é homem, não chora, nem se deixa abrir numa queixa: recebe-a de volta, soberanamente. Recebe-a como quem retoma um bem roubado, é coisa sua mesmo. 

O detalhe que surge e toma corpo neste discurso de senhor e escravo é a cadeira vazia. Ninguém a havia ocupado. Durante toda sua ausência ela se fez presente naquela cadeira. Este detalhe trai. E sentindo-se descoberto por esta fraqueza, eis que volta o Senhor com um novo embuste: proclama, altaneiro, que não lhe dará carinho nem afeto. Chega a ser cômico. Há ternura demais nessa vingança de cadeira vazia e jejum de afeto. 

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