Rua da Ilha de
Paquetá
Há muito
tempo, não muito longe, havia pequenas ruas na periferia da cidade.
Eram ruas estreitas, tão estreitas
que dois carros modernos não poderiam trafegar na mesma direção e ao mesmo tempo,
sem se tocarem. Elas eram de paralelepípedos e tão ajustados um ao outro como
as pedras que erigiram as pirâmides no Egito antigo. Colocados de modo
artesanal e sem uso de cimento, as pedras ali ficavam ali anos e anos. Cravados
nelas, dois tímidos trilhos de bonde acompanhavam as estreitas ruazinhas.
De cada lado daquelas ruas corriam
humildes calçadas, onde duas pessoas, braços dados, mal cabiam. As casas eram
construídas junto à rua. Não tinham muros, jardins, varandas. As portas e
janelas abriam diretamente para a calçada. Muitas pessoas abraçavam conhecidos
através da janela, tal a proximidade que tinham. E um simples olhar devassava
completamente toda a residência. E se podia dizer o que estava sendo preparado
para o almoço ou se um café fresquinho acabara de sair. Não havia e ninguém se
preocupava que houvesse, privacidade. O Rio era uma cidade ingênua e sem
maldade, onde os ladrões não matavam e, às vezes, levavam apenas o que
precisavam, quando viam que o assaltado era tão miserável quanto eles.
As ruas estreitas, em geral, subiam e
desciam pequenas ladeiras. Assim, os que moravam no início da rua, jamais viam
aqueles residentes depois da subida. E vice-versa.
Ah, como eram silenciosas as ruas
estreitas do Rio antigo. E frescas. O sol dispunha de pouco tempo e espaço para
aquecer as pedras da rua. As casas altas de um lado e de outro formavam uma
barreira, sobrando apenas alguns minutos próximo do meio-dia para que o sol
visitasse aquele solo. Com sorte, o ponto mais alto daquelas vielas permitia
uma visão privilegiada da cidade, ou do mar, ou das construções maiores, lá
embaixo.
E à tarde, cuja brisa tornava
agradável, pôr na calçada uma cadeira e brincar com as crianças era o melhor a
fazer, antes de ligar o rádio para os programas de auditório. Então, como a
marcar em relógio invisível o meio da tarde, ouvia-se a indefectível buzina do
padeiro, em sua bicicleta, com o cesto de pães frescos, ainda quentes, da
padaria da esquina. Pães que derretiam a manteiga, melhor, a margarina,
descoberta da indústria, mais leve, mais suave, que não endurecia quando na
geladeira como a manteiga de lata. E o lanche da tarde era sagrado. Era o “chá
das cinco”, só que às três. A mesa sempre tinha uma toalha de linho branca,
bordada, e nela o bule de louça, ornamentado com flores em alto relevo,
geralmente em azul.
E durante o café vespertino, se ouvia
nitidamente o som “blem, blem, blem” repetido várias vezes e as crianças
corriam à janela, a ver o bonde passar.
E ele imponente, vinha subindo a
rua. Intrépido e resistente, vencia rapidamente a ladeira e chegava incólume ao
topo, onde embarcava e desembarcava passageiros, em geral viajando nos
estribos, segurando-se nos balaústres e aproveitando a brisa da tarde.
No comando, o motorneiro. Num sisudo
terno azul marinho, quepe com a sigla da “Bond & Share”, um bigode muito
bem aparado e o olhar firme de um capitão no leme de seu navio. Num ritual
repetido dezenas de vezes por dia virava-se, dava uma atenta olhadela para a
direita, verificando se todos haviam embarcado, tocava o “blem, blem, blem”
várias vezes e seguia impoluto ladeira abaixo. Era o rei da rua.
São imagens de um Rio antigo, que não
existe mais na realidade, mas vive no coração e no sonho dos cariocas de certa
idade.
Busque em sua memória, o aroma de um
café fresquinho, o tilintar e o rangido do bonde chegando e das crianças
fazendo algazarra. E lembre-se de que uma daquelas crianças é você, ou poderia
ter sido.
Clarival Vilaça
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