quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A história por trás de “Meu caro amigo”.



Meu caro Amigo foi antes de tudo uma espécie de desabafo de Chico e Francis Hime – instrumentista brasileiro renomado a quem também é creditada a autoria do clássico. Escrita, seguindo a linha da sutileza para burlar os olhos atentos dos generais, a canção trata-se de uma carta-canção em homenagem ao já falecido dramaturgo Augusto Boal, que vivia no exílio em Lisboa. Faz parte do disco de título quase igual “Meus caros amigos”. A seguir, a controvertida letra:

Meu Caro Amigo

Chico Buarque & Francis Hime

Meu caro amigo, me perdoe, por favor,
Se eu não lhe faço uma visita,
Mas como agora apareceu um portador,
Mando notícias nessa fita.
Aqui na terra tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll,
Uns dias chove, noutros dias bate o sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

Muita mutreta pra levar a situação,
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça,
E a gente vai tomando que também sem a cachaça,
Ninguém segura esse rojão.

Meu caro amigo, eu não pretendo provocar.
Nem atiçar suas saudades,
Mas acontece que não posso me furtar,
A lhe contar as novidades.
Aqui na terra tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll,
Uns dias chove, noutros dias bate o sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

É pirueta pra cavar o ganha-pão,
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro,
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro,
Ninguém segura esse rojão.

Meu caro amigo, eu quis até telefonar,
Mas a tarifa não tem graça.
Eu ando aflito pra fazer você ficar,
A par de tudo que se passa.
Aqui na terra tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll.
Uns dias chove, noutros dias bate o sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

Muita careta pra engolir a transação,
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho,
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho,
Ninguém segura esse rojão.

Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco.
Se me permitem, vou tentar lhe remeter,
Notícias frescas nesse disco.
Aqui na terra tão jogando futebol,
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll,
Uns dias chove, noutros dias bate o sol,
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.

A Marieta manda um beijo para os seus,
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças.
O Francis aproveita pra também mandar lembranças,
A todo o pessoal,
Adeus!

‘Meu caro amigo’: carta em forma de canção

Marina Vaz*

No álbum de Chico Buarque “Meus caros amigos”, lançado em 1976, entre sucessos como “O que será (À flor da terra)” e “Mulheres de Atenas”, uma música se destaca por misturar gêneros de dois tipos de escrita: a letra de música e a carta. A “carta-canção”, feita por Chico e Francis Hime, é destinada ao teatrólogo Augusto Boal ­– que, na época, estava exilado em Lisboa – e é um dos exemplos da chamada canção de protesto.

Concebida durante o governo de ditadura de Ernesto Geisel, seu refrão explicita bem a mensagem principal da letra. Depois de anunciar que precisa contar ao destinatário “as novidades”, o autor lança os versos “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol”. Ora, o futebol, a predominância no Brasil de estilos como o samba e as (óbvias) variações climáticas não são exatamente novidades que mereçam ser destacadas em uma carta para um amigo distante.

Com uso da ironia, a mensagem passada é de que nada mudou no país desde a saída do exilado e que realmente “a coisa aqui tá preta”, como sugere um dos versos seguintes. Para “segurar esse rojão”, o eu-lírico (a voz que fala na letra) acaba buscando refúgio em meios de prazer momentâneo, como a “cachaça”, o “cigarro” e o “carinho”. Nesse contexto, a palavra “choro”, tida inicialmente como um estilo musical, assume outro sentido – representa a tristeza em relação à situação do país. E essa tristeza aparece disfarçada por uma suposta alegria, entremeada de “samba” e de “rock’n’roll”.

Além disso, quando ele se refere a seu lugar de origem como “Aqui na terra”, torna-se inevitável pensar em um “lá”, o local onde o destinatário da mensagem se encontra. Este lugar poderia ser um “céu” (em oposição a “terra”, com letra minúscula), reforçando a ideia de que a vida política e social do Brasil da época nem de longe lembrava a imagem idealizada de paraíso. Ou até mesmo o “espaço” (em oposição a “Terra”, planeta, com letra maiúscula), reforçando a ideia de que o amigo foi obrigado a sair do país, sumiu, ou, na linguagem informal, “foi pro espaço”.

Curioso é perceber que o artista, ao escolher a canção “Meu caro amigo” para dar nome ao disco, colocou-a no plural. Ou seja, apesar de a ideia original da canção ser mandar notícias a um determinado exilado, ela sai ainda mais do plano particular quando o álbum é batizado de “Meus caros amigos”. Isso porque havia mais “amigos” (exilados ou não) como Augusto Boal, vítimas da Ditadura. Assim, o próprio título do álbum reforça o caráter crítico que permeia não apenas esta, mas diversas de suas canções.

*Marina Vaz é jornalista e apaixonada por MPB.


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