segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O Grande Deserto

  

A mulher, no outro compartimento, afastada do marido e do filho, refazia a programação do seu robô doméstico. Ela desejava a limpeza do jardim de grama artificial, pois existiam muitas embalagens descartáveis jogadas no chão desde a noite anterior. 

O marido organizara uma reunião com o objetivo de criar o Comitê que iria até o “Grande Conselho” reivindicar direitos fundamentais, como o de poder opinar sobre a escolha de seus representantes, obter igualdade com as mulheres nas atividades profissionais e ter o direito de escolher o destino dos filhos:  se eles seriam operários ou dirigentes. 

A maior revolta da comunidade consistia na determinação do Grande Conselho de enviar um Engenheiro Genético até seus domos e administrar drogas que transformariam as aptidões natas de seus filhos, cuidados por eles com carinho extremos nas incubadoras. 

O homem e a criança despediram-se da mulher e saíram do domo, cada um com seu reservatório de oxigênio fixado à cintura por uma presilha magnética. De mãos dadas, caminhando lentamente para não sofrerem desgastes desnecessários, entraram no tubo transportador. 

- Pai, me mostra hoje o Grande Deserto. O senhor me prometeu! 

O homem ficou pensativo por alguns instantes e, depois, olhando para a criança, respondeu: 

- Filho, que ideia mais absurda. Não tem nada de bonito nele. Vamos olhar a Reserva Verde. Lá você poderá correr sem necessidade do reservatório de oxigênio. Você poderá até tocar em vegetais de verdade. 

Em vão, o homem tentava demover o filho. Finalmente, ante a obstinação da criança, contrariado, cedeu. Acomodaram-se no tubo transportador e, através do intercomunicador, solicitou a parada GD-Zero. No painel apareceram sinais luminosos referentes à programação que estava sendo desenvolvida na CDS (Central de Deslocamentos Subterrâneos). Assim que o tubo transportador venceu a inércia, seus corpos sofreram pressão sobre as poltronas. Ao mesmo tempo, apareceu no écran o valor da “taxa de transporte”, em números vermelhos. O homem colocou o polegar direito no orifício de identificação digital, para ser descontado de sua cota mensal de deslocamentos. 

Antes de saírem do tubo transportador, colocaram suas máscaras sobre o nariz e boca. Através de um comando existente na porção superior do reservatório, liberaram o oxigênio. 

Quando saíram do tubo transportador, receberam um impacto. Era a diferença da pressão e luminosidade do ambiente. Seus corpos ficaram pesados, seus passos lentos. A vastidão do terreno inóspito que passaram a contemplar, trouxe uma espécie de desânimo para eles. Agora, eles estavam fazendo parte do cenário da antevida, da grande solidão do nada. Pararam e giraram sobre si mesmos. 

A vista da cidade era bonita. Todos os domos mostravam suas cúpulas brilhantes e reticuladas. Faziam giros intermitentes, para acompanhar o próprio deslocamento solar, à procura de mais energia. As vias áreas estavam movimentadas. Mesmo daquela distância, eles podiam ver os passageiros sendo transportados por aerotréns impulsionados pelo laser. Embora a atmosfera fosse extremamente rarefeita, percebiam os ruídos da cidade. Os dois formavam uma minúscula ilha viva, cercada pelo Grande Deserto. 

- Pai, o que é aquela cúpula esverdeada entre os domos? 

- Aquilo  respondeu o pai  é uma construção muito antiga, que servia para os homens se protegerem da própria insegurança, da sua solidão face ao Universo e da falta de respostas que a ciência ainda não lhes podia proporcionar. Por isso, os antigos buscavam respostas na crença de seres intangíveis. Eles chamavam essa construção de Catedral. 

A criança ficou olhando para o pai, enquanto ele fazia descrições da construção em ruínas. O que mais chamou a atenção da criança foi o fato de os antigos usarem unidades chamadas tijolos. Afinal, era mais fácil preparar um domo.  Bastava escolher um local e inflar. 

O pai estendeu a mão para o filho e viraram-se em direção a outro monumento histórico. Era, também, uma construção de tijolos, que se erguia muito alta, vertical e cônica. 

- E isso aí, pai, para que servia? 

Quando o homem ia iniciar a explicação, ouviram o alarme colocado no pulso da criança. Era a hora da alimentação. Ele aguardou que o filho abrisse a pequena caixa plástica que havia tirado do bolso, afastasse por instantes a máscara, e colocasse o pequeno comprimido na boca. O pai esperou que o filho deglutisse seu alimento e continuou a falar: 

- Esse tubo, de algum modo, ajudava na obtenção de um gás. Os antigos convertiam esse gás em energia. A população recebia o gás através de condutos subterrâneos até suas casas e fábricas. Eles o queimavam para obterem calor. Agora, meu filho, nós obtemos a energia através de minúsculas pilhas atômicas colocadas nos domos.  Embora corramos algum perigo, custa pouco e, por isso, vale corrermos o risco, segundo afirma o Grande Conselho. 

Os dois ficaram olhando para a antiga construção por alguns instantes, até que a criança se manifestou. 

- Pai, estou cansado. Acho que caminhamos demais... 

O homem passou a mão sobre a cabeça do filho, num gesto de puro carinho. 

- Também penso a mesma coisa, meu filho. Ainda temos bastante oxigênio. Vamos abrir as válvulas dos reservatórios até atingirmos 760 mm de pressão. Isso irá nos reanimar um pouco mais. Ao mesmo tempo, acionaram as válvulas. 

- Pai, vamos mais para a direita. Eu quero olhar mais de perto aquela construção circular, lá adiante. 

- Era nessa construção que os antigos praticavam esportes. Isso era na época que o ar não era rarefeito e o corpo humano não possuía as limitações que temos hoje. Essa construção abrigava milhares de pessoas para assistirem a uma disputa. 

Ao final da descrição, de mãos dadas, os dois foram se afastando lentamente, até alcançarem as esteiras rolantes que os levariam até a estação do tubo transportador. Já na esteira, a criança fez mais uma indagação.  

- O que era tudo isso aqui, antes de se tornar o Grande Deserto? 

Enquanto se deixava levar pela esteira, o homem tentava estruturar seus pensamentos à procura de uma resposta. 

- Não sei. O melhor será consultarmos nosso terminal de dados lá no domo. 

Quando retornaram, a criança dirigiu-se rápido para o compartimento onde estava instalado o terminal e digitou: 

- Ajuda; 

- Dados Históricos; 

- Grande Deserto: Nome de origem. 

Passaram-se aproximadamente dois minutos e a resposta surgiu no centro do écran. 

RIO GUAÍBA. 

Do livro:

“O hidronauta e outros contos de ficção científica”,

de José Rafael Rosito Coiro.

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