sábado, 24 de setembro de 2022

Tô Voltando

 Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós 

A canção da volta dos Exilados ao Brasil

Uma música pode ser feita com um sentido e um propósito, mas quando ela sai para o mundo e ganha seu público, ela pode adquirir uma conotação bem diferente daquela imaginada por seu compositor. Tenho certeza que Milton Nascimento não esperava, por exemplo, que “Coração de Estudante” viraria um hino da redemocratização do país, em 1984. 

Uma das músicas que ganhou essa importância e repercussão foi “Tô Voltando”, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós. A música, que é como uma carta do homem para sua mulher, ele está distante, viajou, e está pedindo que ela prepare a casa e se prepare para sua chegada. 

O Homem elenca uma série de coisas que ele gosta, desde o feijão preto, a cerveja Brahma, o chinelo na sala, a casa cheia de flor… 

Passa em seguida a dizer de que maneira gosta de sua mulher sensual, com camisola nova, crianças e empregadas longe, quer que ela pegue uma cor e arrume o cabelo só para ele despentear e esquecer de tudo. 

Na verdade, a música foi feita a partir de uma ideia de Maurício Tapajós, cansado das viagens depois de uma turnê de mais de um mês no Nordeste, que estava com saudade de casa, e começou o mote da canção “Tô voltando”. 

No entanto, na internet, muita gente acha que essa música, ou foi composta por Chico Buarque. Explico. 

O ano era 1979, e o Brasil estava na campanha de Anistia dos exilados políticos da ditadura. Anistia que acabou saindo. E adivinha que música os primeiros exilados cantaram quando chegaram em solo nacional? Tô voltando!!! E como muitos identificam canções de combate à ditadura com Chico Buarque, muitos pensam hoje que a música é dele. Paulo César conta isso no seu “História das minhas canções”. O vídeo vem na voz de Simone, que eternizou o sucesso. 

TÔ VOLTANDO 

Maurício (Tapajós) me ligou pra falar sobre uma ideia que tivera no caminho de volta. Cansado da tensão de palco (sem o hábito de cantar pra o público) e de tanta farra, bateu nele, já no finalzinho, uma saudade imensa de casa, da mulher, dos filhos, do Leblon, do Rio. E de Tapajós pra Tapajós ele dizia, às vésperas do retorno: 

– Nem acredito que eu tô voltando…

E esse mote não o abandonou mais. Só podia dar samba… Com o violão na mão e o fone preso entre o ombro e a orelha cantarolou pra mim rascunho da melodia em que se repetia o “tô voltando”. 

– Quê que você acha, parceiro?

− Acho ótimo, gordo. Tô indo pra aí. Ainda aguentas mais um uísque? 

Passamos o resto do dia dando a forma à composição. 

Na manhã seguinte, já em meu escritório, fui burilando a letra. Era simples e popular a canção e os versos foram fluindo. Eu, que já passara tanto por isso, tantas as viagens que fizera, enormes as saudades de casa, sabia bem do assunto que devia abordar. O papo era recorrente à nossa profissão. Toda a classe artística sentia profundamente essa ânsia de regresso depois de cada temporada. E todos queriam as mesmas coisas que eu rabiscava agora naquele samba. Ficou lindo o que agente fez, e cheio de empatia. Era cantar uma vez e na segunda todos acompanhavam.Virava logo coro. Fácil de decorar. Senti imediatamente cheiro de sucesso. 

(...) 

Agora vocês vejam como a arte tem seus mistérios… 

Pouco tempo depois, estava eu vendo o Jornal Nacional da TV Globo cujo tema central era o dia do retorno dos exilados políticos ao nosso país, tendo sido conquistado, com muita luta dos que ficaram encarando o regime militar, a anistia ampla, geral e irrestrita, quando, pra minha surpresa, no avião lotado por nossos companheiros, entre entrevistas e choros ao vivo, entoou-se, numa só voz, o “Tô voltando”. A cena foi uma pancada no meu coração. 

A emoção tomou conta de mim e as lágrimas correram no meu rosto. Minha voz embargou. Os pelos eriçaram. Estufavam as veias e os nervos retesavam. 

Tive que respirar fundo e sair da frente da tevê pra não enfartar. 

A música tinha tomado outra conotação a partir dali. Virara o Hino dos Exilados. E é assim que é vista até hoje, pra meu regozijo. E é assim que pensam que ela foi feita, pra minha satisfação. O que mostra que o destino das canções não está em nossas mãos. Elas são o que elas quiserem ser, acima dos motivos por que foram feitas. Que bom que ela tenha virado o que virou.

Ergo um brinde a isso. Sempre. 

(Do Blog Música em prosa) 

Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto,
Eu tô voltando.
Põe meia dúzia de Brahma pra gelar, muda a roupa de cama,
Eu tô voltando.

Leva o chinelo pra sala de jantar,
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar,
Quero te abraçar,
Pode se perfumar, porque eu tô voltando.
 

Dá uma geral, faz um bom defumador,
Enche a casa de flor, que eu tô voltando.
Pegue uma praia, aproveita, tá calor,
Vai pegando uma cor que eu tô voltando.

Faz um cabelo bonito pra eu notar,
Que eu só quero mesmo é despentear,
Quero te agarrar,
Pode se preparar, porque eu tô voltando.
 

Põe pra tocar na vitrola aquele som,
Estreia uma camisola, tô voltando.
Dá folga pra empregada,
Manda a criançada pra casa da avó,
Que eu tô voltando.

Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar,
Telefone não deixa nem tocar.

Quero lá, lá, lá, ia, lá, lá, lá, ia, lá, lá, lá, ia
Porque eu tô voltando...

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