quarta-feira, 12 de julho de 2023

Um presente raro e de bom gosto

Quando ainda lecionava numa Escola Municipal de um bairro periférico de Porto Alegre, um aluno do noturno disse que na empresa onde ele trabalhava havia muitos livros velhos e descartados. Informou-me que um dia me daria um deles de presente. Disse-lhe que um presente, principalmente um livro, seria sempre bem-aceito por mim.

Qual não foi a minha surpresa, quando um dia ele me traz um livro velho, meio comido por traças, principalmente a capa e as bordas, mas com os textos intactos. O livro chamava-se “A Musa em Férias (Idílios e Sátiras) do grande poeta português Guerra Junqueiro, de 1893! Na contracapa, havia as seguintes palavras: “Tiraram-se d´esta edição dez exemplares em papel Whatman”. 

Na minha estante, esse livro é, seguramente, o mais antigo e, talvez, o mais raro. Saber que no mundo lusitano eu mais nove temos esse livro, e que no prefácio há um poema o qual transcrevo abaixo.

DEDICATÓRIA 

Recordam-se vocês do bom tempo d´outrora,

D´um tempo que passou e não volta mais,

Quando íamos a rir pela existência fora

Alegres como em junho os bandos dos pardais?

Croava-nos a fonte um diadema d´aurora,

E o nosso coração vestido de esplendor

Era um divino abril radiante, onde as abelhas

Vinham sugar o mel na balsamina em flor.

Que doiradas canções nossas bocas vermelhas

Não lançaram então perdidas pelo ar!...

Mil quimeras de glórias e mil sonhos dispersos,

Canções sem versos,

E que nós nunca mais havemos de cantar!

Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e a esperanças

São áureos colibris das regiões da alvorada,

Que buscam para o ninho os peitos das crianças.

E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,

E quando o inverno chega à nossa alma, então

Os pobres colibris, coitados, sentem frio,

E deixam-nos a nós o coração vazio,

Para fazer o ninho em outro coração.

Meus amigos, a vida é um sol que chega ao cúmulo,

Quando cantam em nós essas canções celestes;

A sua aurora é o berço, e o seu ocaso é o túmulo:

Ergue-se entre os rosais e expira entre os ciprestes.

Por isso, quando o sol da vida já declina,

Mostrando-nos ao longe as sombras do poente,

É-nos doce parar na encosta da colina

E volver para trás o nosso olhar plangente,

Para trás, para trás, para os tempos remotos

Tão cheios de canções, tão cheios de embriaguez,

Porque, ai! A juventude é como a flor do lótus,

Que em cem anos floresce apenas uma vez. 

E como o noivo triste a quem morreu a amante,

E que ao sepulcro vai com suas mãos piedosas

Sobre um amor eterno – o amor d´um sonho só instante –

Deixar uma saudade e uma coroa de rosas;

Assim, amigos meus, eu vou sobre um tesouro,

Sobre o estreito caixão pequenino, infantil,

Da nossa mocidade, − a cotovia d´oiro

Que nasceu e morreu numa manhã d´abril! –

Desprender, desfolhar estas canções sem nexo,

Estas pobres canções, tão simples, tão banais,

Mas onde existe ainda um pálido reflexo

Do tempo que passou e que não volta mais.

 

Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta a 17 de setembro de  1850 - Lisboa, 7 de julho de 1923) foi bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada “Escola Nova”. Poeta panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.

“O amor é escada sublime,
Vasta, imensa, luminosa
Que leva o filho do crime
Ao doce olhar de Jesus.
É chama de fogo eterno,
Que ascende vertiginosa
Dos sorvedores do inferno
Aos sorvedores da luz.
Que o fogo de mil crateras
Tombasse sobre o Universo,
E mar, e homens, e feras,
Ficasse tudo submerso;
Embora passado um dia,
Nalgum ângulo de rocha,
Onde a urze desabrocha,
O amor desabrocharia.”

Esta poesia, de um autor desconhecido, foi posta no frontispício do livro “Os Simples” de Guerra Junqueiro, o grande poeta português. 

3 comentários:

  1. Sou portuguesa e fiquei sem palavras. Grata pela partilha.

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    1. Guerra Junqueiro é um poeta genial da Língua Portuguesa, língua que tenho muito orgulho de falar.

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  2. uma preciosidade histórica e literária! parabéns!

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