Alessandro Garcia
A mãe pedia que rezássemos pelo pai.
Nós não sabíamos aonde o pai tinha ido, mas rezávamos, a mãe pedia e nós
rezávamos. Nos dias em que tínhamos que acompanhá-la até o cemitério, era pior.
Comprávamos as flores, ajudávamos a mãe a limpar a sua sepultura, sempre tão
cheia de inços, e nos púnhamos graves, tão sérios como seria estranho ser para
a idade que tínhamos. Os anos de falta do pai já tinham passado. Nos primeiros
tempos, doía tanto que chegávamos a passar mal. A Marina ficou dias sem ir ao
colégio, chorava noite e dia, chorava tanto que eu achava que ela ia morrer
também. Como eu era o único homem da família então, devia me manter mais duro,
ao mesmo tempo tentar parecer mais sério, ainda que me doesse até os ossos
fingir retidão na frente da mãe e da mana e de noite chorar como um condenado a
falta do pai. O bom é que éramos pequenos o suficiente na época, se fosse hoje,
talvez fosse mais dolorido, se o pai desaparecesse assim, e a mãe chegasse e
nos dissesse que ele tinha morrido. Como não vimos corpo, não choramos o
defunto, ficava ainda mais difícil se dar conta de que o pai tinha mesmo
morrido. Para a mãe, eu não sei bem como foi toda a função de provar que o pai
morreu, éramos tão pequenos e ela tão só, correndo de um lado para o outro,
toda a burocracia e a papelada para mostrar que sim, seu marido tinha morrido;
mesmo não tendo corpo para enterrar, ela queria uma cerimônia religiosa e padre
e toda a gente chorando em volta de um caixão que não tinha defunto dentro.
Suas roupas, somente. Acho que tinha umas roupas suas que a mãe colocou lá
dentro, dizendo que eram parte do pai e que devíamos chorar também porque o pai
tinha morrido e devíamos sentir a sua falta e agora eu era o homem da casa.
Depois, mesmo com toda a catequese e
a crisma e a comunhão e tudo aquilo de que a mãe fazia questão, porque se
apegava demais a Deus e dizia que era devota de Virgem Maria, nem Marina nem eu
fazíamos de coração. Não queríamos aborrecer a mãe, então não tinha cabimento
que nos colocássemos como um desses moleques mimados que tinha no colégio, que
recebiam tudo de mão beijada e ainda reclamavam para a mãe se ela não lhes dava
o tênis da marca que haviam pedido. Eu nem conhecia as marcas de tênis. Vestia
o que a mãe podia comprar para mim. Assim também era Marina. E, hoje, pensando
bem, até me surpreendo que fôssemos tão boas crianças, éramos sim. Somente
quando eu cresci um pouco mais e comecei a trabalhar e pude comprar as coisas
para casa e continuar a pagar o aluguel da sepultura que era cara para danar lá
no cemitério do Centro é que pude também comprar uns agrados para Marina, pobre
de Marina, sempre com seus vestidinhos remendados que herdava da mãe, e umas
coisas para mim, e então comprei um desses tênis bonitos porque as moças no
baile gostavam, mas nem importa, porque, no fim das contas, também não olhavam
para mim. Diziam que eu era filho do finado que não tinha.
Finado que não tinha, pois não tinha
o corpo, todos da cidade sabiam que enterramos o pai em espírito, que era como
a mãe falava. Um enterro digno como bom cristão que era para ter um lugar no
céu, e onde estivesse seu corpo, estaria na paz do Nosso Senhor. A mãe dizia
paz do Nosso Senhor, e eu me lembro de Marina e eu repetindo ajoelhados ao seu
lado, em suas orações compridas, especialmente no Dia de Finados. Eu sei lá por
que inventaram um dia para os mortos, esses mortos que sempre é preciso
acalmá-los, parece que sempre querem um agrado, que rezem por eles, senão se
põem aborrecidos e acabam atazanando a paciência dos vivos aqui, mas se tem o
Dia dos Finados que seja, que façamos o que é preciso fazer, então, porque não
discuto muito essas coisas de convenção que as pessoas inventam e se inventaram
temos mais é que respeitar e cumprir. E que mal há de num dia só rezar por eles
se eles ficam mais calmos assim? Depois, não custava nada, mesmo estando já
mais velho, ainda que não quisesse sair de casa e me juntar com Dora (a mãe já
estava velhinha e queria ficar e cuidar dela antes que se fosse para junto do
pai). Podia ajudá-la a ir até o cemitério, limpar os inços com ela e deixar a
sepultura do pai tão bonita, lustrar o vidro da foto dele já tão embaçada e
trocar as flores com a mãe, coisa que ela mais gostava de fazer. E mesmo que eu
já adulto, agora sim que não acreditava mais nessas coisas da igreja e que as
almas vão para um lugar tão bom, eu acho que quando a gente morre já era e
pronto, fazia o que a mãe queria para ela ficar feliz, e se ela dizia que o pai
estava nos olhando, estava num lugar melhor e ficava mais contente da gente
limpar sua sepultura, eu fazia, o que é que eu não fazia para deixar a mãe
feliz?
Quando a mãe estava na beirinha da
morte, juntou um monte de gente, já que a mãe era boa e todo mundo gostava dela
ali em volta e mesmo que falassem pelas costas que era viúva do finado que não
tinha. Mas as gentes são tudo assim, o povo fala mesmo e que se há de fazer, se
depois, quando precisam da mãe, pedem ajuda e fazem de conta que não falaram
nada? Como a mãe era tão boa, fazia que não escutava, por isso ela nem gritou
com ninguém quando ficaram tudo à sua volta rezando por ela, nem o turco que
lhe cobrava o olho por qualquer fazenda que ela precisasse para as suas
costuras, até ele estava ali, rezando, sei lá de que religião são os turcos, e
se eles acreditam em Deus, ou ele só estava ali para fazer fita. E, nessa hora,
era todo mundo amigo, mas só eu e a Marina que segurávamos a mão da mãe como
ela queria, era só isso que ela precisava para morrer em paz. E ela disse que bom
seria se nosso pai estivesse lhe esperando para ecebe-la e ficarem juntos para
sempre. Por isso é que eu não sei (não sei, pois depois ele foi embora), se ela
estava falando do pai que ia ecebe-la lá no céu ou se começou a devanear quando
fitou o homem que entrava lá em casa, que nem eu nem Marina conhecíamos, mas
que a mãe começou a chamar pelo nome do nosso pai, e como a mãe já estava
delirando, nem ligamos, nem nós nem o homem também, devia ser um amigo de
longe, já velhinho como a mãe, embora todo mundo tenha achado tão estranho, e
eu também, é verdade, que ele se parecesse tanto comigo.
*****
Alessandro Garcia é autor
de ‘A Sordidez das Pequenas Coisas’ (Não Editora, 2010), de onde
saiu este conto, premiado no Concurso Nacional de Contos José Cândido de
Carvalho. O livro foi finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação
Biblioteca Nacional. O autor participou de diversas coletâneas, foi colunista
do Globo Online e do Digestivo Cultural, além de ter sido traduzido para o
espanhol na Revista
Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional. Também tem contos
traduzidos para o inglês. Finaliza o romance ‘A Zona da Invisibilidade’. Mais
em: www.alessandrogarcia.com
*****
P.S. Eu, professor Nilo da Silva
Moraes, responsável por este almanaque, lecionei numa escola de Porto Alegre e
tive como aluno o autor do conto acima. Alessandro, em tudo que escrevia,
principalmente nas redações bimestrais, já demonstrava talento para a
Literatura. Já é autor premiado, talentoso, com um futuro brilhante pela
frente. Esse menino vai longe...
Muito gratificante para o Professor.
ResponderExcluir