Caetano Veloso
Alguma coisa acontece
No meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…
No meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…
É que, quando eu cheguei por
aqui,
Eu nada entendi
Da dura poesia
Concreta de tuas esquinas,
Da deselegância discreta
De tuas meninas…
Eu nada entendi
Da dura poesia
Concreta de tuas esquinas,
Da deselegância discreta
De tuas meninas…
Ainda não havia para mim Rita
Lee
A tua mais completa tradução,
Alguma coisa acontece no meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…
A tua mais completa tradução,
Alguma coisa acontece no meu coração,
Que só quando cruzo a Ipiranga
E a Avenida São João…
Quando eu te encarei
Frente a frente
Não vi o meu rosto.
Chamei de mau gosto o que vi,
De mau gosto, mau gosto.
É que Narciso acha feio
O que não é espelho,
E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho,
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes…
Frente a frente
Não vi o meu rosto.
Chamei de mau gosto o que vi,
De mau gosto, mau gosto.
É que Narciso acha feio
O que não é espelho,
E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho,
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes…
E foste um difícil começo,
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho
Feliz de cidade,
Aprende de pressa a chamar-te
De realidade,
Porque és o avesso
Do avesso, do avesso, do avesso…
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho
Feliz de cidade,
Aprende de pressa a chamar-te
De realidade,
Porque és o avesso
Do avesso, do avesso, do avesso…
Do povo oprimido nas filas
Nas vilas, favelas,
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas,
Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas.
Nas vilas, favelas,
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas,
Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas.
Eu vejo surgir teus poetas
De campos e espaços,
Tuas oficinas de florestas,
Teus deuses da chuva…
De campos e espaços,
Tuas oficinas de florestas,
Teus deuses da chuva…
Panaméricas
De Áfricas utópicas,
Túmulo do samba,
Mais possível novo,
Quilombo de Zumbi,
E os novos baianos
Passeiam na tua garoa,
E novos baianos
Te podem curtir numa boa…
De Áfricas utópicas,
Túmulo do samba,
Mais possível novo,
Quilombo de Zumbi,
E os novos baianos
Passeiam na tua garoa,
E novos baianos
Te podem curtir numa boa…
→ O cruzamento da Avenida
Ipiranga com a Avenida São João deve seu grande reconhecimento à música Sampa,
de Caetano Veloso. A canção, lançada no álbum Muito − dentro da estrela
azulada, de 1978, é uma homenagem a cidade paulistana, conhecida por sua garoa
característica e pela recepção de um grande número de migrantes, em especial os
baianos, como Caetano.
→ O curioso é que em uma cidade
com grandes representantes como Os Mutantes e Demônios da Garoa, ninguém
conseguiu decifrar São Paulo melhor do que o baiano Caetano Veloso. A obra–prima
é composta falando das principais características da capital paulista. A
poluição, a recepção para os migrantes, as múltiplas culturas e o sonho de quem
vem de fora estão presentes na composição.
O texto abaixo é de Sergio Soeiro
→ A despeito de “Sampa” ter sido
composta no final dos anos 70, Caetano procurou colocar nos versos a primeira
impressão que teve da grande metrópole quando lá desembarcou, ainda na década
de 60. Vindo de um espaço ainda muito ligado à natureza, o baiano sentiu o
estranhamento diante de tudo o que viu, e procurou mostrar o conflito
estabelecido entre inocência versus ciência, com esta última tornando-se
responsável pela destruição dos valores realmente humanos, do aniquilamento e
da insignificância do homem na cidade. Este conflito fica bem evidente nos
versos: “E foste um difícil começo (…) E quem vem de outro sonho feliz de
cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade…”. Os versos de “Sampa”
expressam o fascínio e a repulsa, o conflito diante do novo e desconhecido,
deixando implícita a ambiguidade da questão: Seria a felicidade possível
naquela cidade? Conhecer seus segredos, seus mistérios, encantar-se com sua
sedução, atingir o topo das realizações, enfim tornar realidade os seus sonhos,
eis o que todos os migrantes esperam ao chegar em “Sampa”.
→ A emoção ao “cruzar a Ipiranga com a São João” se dá pelo fato que ele desceu do ônibus que veio do Rio de Janeiro cujo ponto final era exatamente naquela esquina. Diante dos seus olhos lá estavam a Cinelândia, o bar Jeca, e o Brahma.
→ No verso “Da dura poesia concreta e tuas esquinas…” ele faz uma homenagem aos poetas paulistanos criadores do movimento modernista, onde se incluía a poesia concreta.
→ “A deselegância discreta de tuas meninas…” Se dá pelo fato de que naquele tempo Caetano era uma figurinha um tanto quanto exótica, daí sua grande cabeleira ter chamado a atenção das meninas que cochichavam com risinhos discretos.
→ Enquanto atravessava a São João para a Ipiranga, ainda atônito, procurava na multidão um rosto com quem pudesse se identificar, e na sua visão tropicalista achou de mau gosto o jeito dos paulistanos, mas também faz uma autocrítica e considera que o erro estético não está, necessariamente, nos paulistanos, mas sim nele mesmo, pois sua mente se “apavora no que ainda não é mesmo velho / nada do não era antes” (da visão que trazia da sua cidade) e que ele talvez ainda não seja capaz de alcançar aquela modernidade pois ainda não é um “mutante”, e aqui ele faz uma homenagem aos seus amigos do grupo “Mutantes”, bem como à Rita Lee.
→ Refeito do primeiro impacto, o sentimento seguinte foi de solidão, pois embora no meio da multidão, não encontrava a sua própria imagem refletida nas feições dos paulistanos.
→ Diante da realidade do momento acha que encontrou o avesso do que sonhava. Para se justificar da decepção, fala do lado ruim do que vê: filas, poluição, o povo oprimido, da modernidade, o novo excluindo o antigo, tudo tão diferente da simplicidade da sua terra natal.
→ No verso “da força da grana que
ergue e destrói coisas belas…” quer mostrar a dualidade para o bem e para o mal
que existe em tudo e em todos.
→ Quando cita “Panaméricas”, ele se refere a um amigo escritor paulistano, José Agripino de Paula, autor do livro “Panamérica”.
→ “Túmulo do samba” é uma expressão atribuída a Vinicius de Moraes que afirmava que os compositores paulistas não possuíam ritmo e gingado de sambistas, que batizou São Paulo como o túmulo do samba, e considerava que o único local onde se fazia samba de verdade era nos “Quilombos”.
→ E por fim, já aclimatado com a garoa, ele, junto com seus amigos baianos, curtem “Sampa” numa boa.
Encontro histórico: João Gilberto, Caetano
Veloso e Gal Costa, em 1971.
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