sexta-feira, 30 de março de 2018

Gilda Marinho


Por Luís Fernando Veríssimo


Eu estava pensando no que escrever sobre a Gilda Marinho* e, como costuma acontecer depois de uma certa idade, caí numa nostalgia ressentida. Pensei em como os grandes tipos da cidade estão se acabando e em como nossa paisagem sentimental fica cada vez mais pobre.

Pensei em como a Gilda – até por morar onde morava, no centro tradicional da cidade, no velho Clube do Comércio em frente à velha Praça da Alfândega – representava uma espécie de última cidadela da Porto Alegre dos grandes tipos. Sua excentricidade e sua exuberância estavam um pouco nisso, de continuar a ser, sem concessões, um tipo da velha Porto Alegre, embora a velha Porto Alegre não existisse mais. A Gilda era, ao mesmo tempo, a grã-fina levada quase à paródia nos seus parâmetros e nos seus gostos, e a personificação, com a sua inteligência e bom humor, da irreverência diante da pretensão social e da besteira. Há pessoas que não querem envelhecer por vaidade. A Gilda se recusou a envelhecer para não trair o que se esperava dela, para não ser infiel ao seu tipo. E me dei conta que a pior maneira de escrever sobre a Gilda é com nostalgia. Ela podia lamentar que Porto Alegre não estivesse mais à altura de seu tipo, mas não era uma nostálgica. Ao contrário, continuou até o fim uma mulher contemporânea. Ninguém jamais pensou em sentar aos pés da Gilda e ouvir reminiscências dos seus tempos de moça. Seus tempos de moça foram até anteontem.
  
A própria Gilda contava que, com cinco anos, ainda em Pelotas, às vezes suspirava fundo, e sua mãe perguntava o que era. E Gilda:

− Saudade de Paris...

*****

(Parte da crônica “Algumas pessoas”, de Luís Fernando Veríssimo)

*Nascida em Pelotas, no ano de 1900, esta porto-alegrense de coração, fez história na em nossa cidade, sobretudo na área cultural, foi jornalista, uma das primeiras mulheres a trabalhar na imprensa gaúcha, tradutora, professora de Artes da UFRGS, mas, sem dúvida alguma, seu sucesso maior foi como colunista social. Gilda morreu em Porto Alegre, em 1984, sem antes, porém, de passar batom e espalhar perfume no quarto em que estava internada.

(Os últimos momentos de Gilda Marinho)

Eu volto

Antes de deixar seu apartamento levada para o hospital, Gilda, em sua permanente vaidade, quis maquiar-se. Gasparotto ajudava-a.

Arrumou os cabelos com cuidado e escolheu uma roupa discreta entre tantos vestidos coloridos e brilhantes que enchiam seu guarda-roupa. As mãos trêmulas já não podiam espalhar com precisão o rouge em seu rosto abatido; nem acompanhavam a linha dos lábios com o batom.

Naquele momento nenhuma frase espirituosa conseguiria livrá-la do embaraço da situação, mas ele tentava superar as limitações do físico que fraquejava, não se descuidando da aparência. Estava muito longe a mocinha faceira das festas de Pelotas, a militante das causas revolucionárias, a dama de todos os salões. Mas ela não queria entregar-se ao destino como o fazem tantas anciãs doentes; por menor que fosse, queria registrar o traço de que ali estava Gilda Marinho.

Quando saísse, nunca mais voltaria àquele lugar, no qual, durante tantos anos, conviveu com seu próprio mito, com segredos que ninguém além dela saberia desvendar. Desta vez, as pernas a traíam os movimentos, não pelo excesso de vodca ou champanha ou conhaque tomados na véspera, mas pela fatalidade, que ela preferia não aceitar.

Abatido e nervoso, Gasparotto a ajudava nos preparativos. Os médicos não tardariam e qualquer minuto perdido poderia ser irresgatável. Pálida, sentindo-se perdida, Gilda quase não falava. A doença roubara aquele calor de eterna juventude, aquele olhar brilhante e profundo dos apaixonados pela vida. E Gilda foi uma apaixonada: amou os bons e os maus, amou a si e aos outros, amou a humanidade como um todo. E amou seus amantes, talvez mais do que tenha sido amada por cada um deles.

Ao longo da vida entregou-se com a ansiedade dos que sorvem cada minuto como se fosse o último. E, naquele instante, certamente estava incrédula de que seria sua hora; ou talvez não... Talvez admitisse com serenidade aquele contratempo. Quem sabe?

Soou a campainha. Médicos e enfermeiros assaltaram o apartamento em agitada movimentação.

Tudo foi muito rápido. Colocaram-na em uma maca e a conduziram para fora.

Na tarde quente de verão, uma pequena multidão aglomerou-se na porta do prédio atraída pela ambulância, na habitual curiosidade mórbida despertada pelos símbolos da desgraça. Atenta a tudo, apesar da fraqueza, Gilda deu-se conta de que a situação já deveria ter despertado a atenção dos frequentadores da Rua da Praia, ávidos de novidade, sempre. E com a voz pausada, mas decidida, denotando uma ponta de seu inimitável sarcasmo, pediu a alguém que estava mais próximo:

 − Avisem às pessoas que não fui assassinada; eu volto.

A inesperada brincadeira daquela célebre mulher, quase moribunda, provocou riso incontrolável na equipe que a conduzia até a ambulância.

Foi a última vez que alguém riu para Gilda.

A ambulância saiu pelo calçadão da Rua da Praia; sua amada Rua da Praia, passarela de tantos anos...

Não deu para ver, pela última vez, os jacarandás da Praça da Alfândega.

Desta vez, Gilda não conseguiu voltar para casa.

(Texto do livro Gilda Marinho, de Juarez Porto)


A notícia de sua morte na imprensa

“Desde o meio dia da tarde de ontem hospitalizada na Cardioclínica de Porto Alegre, morreu às 18h30min, a conhecida jornalista Gilda Marinho, vítima de embolia pulmonar e parada cardíaca. O sepultamento será hoje, às 16h, no Cemitério São Miguel e Almas.”

Segundo a enfermeira Zuki, que cuidava de Gilda há mais de dois anos, a colunista social teve vários problemas após o acidente de automóvel que sofreu em 13 de janeiro. No dia 2 de fevereiro ela teve uma grave crise asmática, mas, após receber assistência e medicação, melhorou. Ontem, houve um agravamento no seu estado de saúde, que exigiu a internação na Cardioclínica, por volta das 15h30min.

(Folha da Tarde de 8/2/84)


O último pedido de Gilda Marinho

Sempre com mordacidade pela própria morte, enfatizava que, quando a fossem enterrar, não queria que pusessem uma lápide convencional com sua foto, nome e data de nascimento e falecimento: “Isso é horrível”. Comentava. Queria apenas que em seu túmulo fosse inscrito: “Aqui jaz Gilda Marinho. Completamente contra a sua vontade”. O desejo, até hoje, não foi satisfeito.



Um comentário:

  1. Uma mulher a frente de seu tempo, linda e culta. Que esteja sob os cuidados do Senhor.

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