terça-feira, 27 de março de 2018

Visita de médico

Uma Peça de Teatro do século 18


D. Lancerote − Oh! tarda este médico!

Sevadilha − Não pode tardar muito, pois me disse que vinha.

D. Lancerote − Como estais agora, meu sobrinho?

D. Tibúrcio − Depois que arrotei, acho-me mais aliviado.

D. Nize − Vaso ruim não quebra (à parte).

D. Clóris − Se fora coisa boa, não havia de escapar (à parte).

D. Lancerote − Não sabeis quanto folgo com a vossa melhora, pois me estava dando cuidado o enterro, e me podeis agradecer a boa vontade, pois vos seguro que havia de ser luzido: vós o veríeis.

D. Tibúrcio − Outro tanto desejo eu fazer a Vossa Mercê.

(Entram D. Gil e Semicupio vestidos de médicos).

Semicupio − Deo gratias.

D. Lancerote − Entrem, senhores doutores.

Semicupio − Qual de Vossas Mercês é aqui o doente?

D. Lancerote − É este que aqui está de cama.

Semicupio − Logo me pareceu pelos sintomas.

D. Tibúrcio − Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Senhor doutor!

Semicupio − Agora vou a isso; ora diga-me o que lhe dói?

D. Tibúrcio − Tenho na barriga umas dores mui finas.

Semicupio − Logo as engrossaremos; e tem o ventre tremido, inchado e pululante?

D. Tibúrcio − Alguma coisa.

Semicupio − Vossa Mercê é casada ou solteira?

D. Lancerote — Não, senhor, que meu sobrinho é macho.

Semicupio − Dianteiro ou traseiro?

D. Lancerote − Ui, Senhor doutor! Digo que meu sobrinho é varão.

Semicupio − De aço ou de ferro?

D. Lancerote − É homem: não me entende?

Semicupio − Ora acabe com isso; eis aqui como por falta de informações morrem os doentes; pois se eu não especulara isso com miudeza, entendendo que era macho lhe apucava uns cravos, e se fosse varão umas limas; e como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe há de fazer.

D. Lancerote − Eis aqui como eu gosto de ver os médicos assim especulativos.

Semicupio − Pois o mais é asneira; diga-me mais, ceou demasiadamente a noite passada?

D. Tibúrcio − Tanto como a futura, porque desde que se me acabaram as chouriças que trouxe no alforje, me tem meu tio posto a pão e laranja.

D. Lancerote − Aquilo são delírios, Senhor doutor.

Semicupio − Assim deve ser por força, ainda que não queira, pois, conforme ao aforismo: Cum barriga dolet, catera membra dolent.

D. Tibúrcio − Não são delírios, Senhor doutor, que eu estou em meu juízo perfeito.

Semicupio − Pior, pois quem diz que tem juízo, não o tem.

D. Lancerote − Senhor doutor, o homem está alucinado, depois que um fantasma, que saiu de uma caixa, o desancou; e, sobre isto, a grande pena que tem tomado de umas moças que aqui introduziu em casa, enganando-as, de cuja inocência se me veio queixar à mãe, que era mulher de bem, ao que parecia.

Semicupio − Ela é muito criada de Vossa Mercê.

D. Tibúrcio − Deixemos isso; o caso é que a minha barriga não está boa.

Semicupio − Cale-se que ainda há de ter uma boa barrigada. Deite a língua de fora.

D. Tibúrcio − Ei-la aqui.

Semicupio − Deite mais.

D. Tibúrcio − Não há mais.

Semicupio − Esta bastará; é forte linguado! Tem muito boa ponta de língua! Vejam Vossas Mercês, Senhores doutores.

D. Gil − A língua é de prata.

D. Fuas − Úmida está bastante.

Semicupio − Venha o pulso: está intermitente, lânguido, convulsivo.

D. Lancerote − Ah! senhor, que grande médico!

D. Nize e D. Fuas − Como está tão melancólico! (para D. Clóris).

D. Clóris − Estará cuidando na receita.

Semicupio − Ora, senhores, capitulemos a queixa. Este fidalgo (se é que o é, que isto não pertence à medicina) teve uma colérica procedida de paixões internas, porque o espírito, agitado da representação fantasmal e da investida feminil, retraindo-se o sangue aos vasos linfáticos, deixando exauridas as matrizes sanguinárias, fez uma revolução no intestino reto; e, como a matéria crassa e viscosa, que havia nutrir o suco pancreático, pela sua turgência se achasse destituída de vigor, por falta de apetite famélico, degenerou em líquidos; estes, pela sua virtude acre e modaz, vilificando e pungindo as túnicas e membranas do ventrículo, exaltaram os sais fixos e voláteis por virtude do ácido alcalino, de sorte que fez com que o senhor andasse com as calças na mão toda esta noite: in calsis andatur, qui ventre evacuar, disse Galeno.

D. Lancerote − Eu não lhe entendi palavra.

D. Tibúrcio − Eu morro sem saber de quê.

Semicupio − Conhecida a queixa, votem o remédio, que eu, como mais antigo, votarei em último lugar.

D. Gil − Eu sou de parecer que o sangrem.

D. Fuas − E eu que o purguem.

Semicupio − Senhores meus, a grande queixa, grande remédio; o mais eficaz é que tome umas bichas nas meninas dos olhos, para que o humor faça retrocesso de baixo para cima.

D. Tibúrcio − Como é isso de bichas nas meninas dos olhos?

Semicupio − É um remédio tópico; não se assuste, que não é nada.

D. Tibúrcio − Vossa mercê quer-me cegar?

D. Lancerote − Calai-vos, sobrinho, que ele médico é, e bem o entende.

D. Tibúrcio − Por vida de D. Tibúrcio, que primeiro há de levar o diabo o médico e a receita, do que eu tal consinta.

Semicúpio − Deite-se, deite-se: o homem está maníaco e furioso.

*****

(Guerras do Alecrim e da Manjerona, cena V, da 2ª parte).

Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte:
Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.


Antônio José da Silva, O Judeu, (Rio de Janeiro, 1705, Lisboa, 1739) advogou em Lisboa, e, havendo escapado a uma primeira acusação de judaizante, tinha-se popularizado como autor de peças dramáticas, então chamadas óperas, para o teatro do Bairro-Alto, quando foi denunciado por uma escrava e, condenado, sofreu pena capital no Campo da Lã. Espírito’ galhofeiro e que essencialmente ambicionava comprazer ao público, nem sempre acatou a decência; mas não vale negar-lhe, como bem pondera o Senhor Pereira da Silva, o pico da originalidade e do sal cômico.

Entre as suas óperas distinguem-se: Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha; O Labirinto de Creta; Esopaida; Guerras do Alecrim e da Manjerona; e o Anfitrião, no qual se tem querido ver alusões ferinas a D. João V.

Nenhum comentário:

Postar um comentário