Uma Peça de Teatro
do século 18
D. Lancerote − Oh! tarda este médico!
Sevadilha − Não pode tardar muito, pois me disse que vinha.
D. Lancerote − Como estais agora, meu sobrinho?
D. Tibúrcio − Depois que arrotei, acho-me mais aliviado.
D. Nize − Vaso ruim não quebra (à parte).
D. Clóris − Se fora coisa boa, não havia de escapar (à
parte).
D. Lancerote − Não sabeis quanto
folgo com a vossa melhora, pois me estava dando cuidado o enterro, e me podeis
agradecer a boa vontade, pois vos seguro que havia de ser luzido: vós o
veríeis.
D. Tibúrcio − Outro tanto desejo eu fazer a Vossa Mercê.
(Entram D. Gil e Semicupio vestidos de médicos).
Semicupio − Deo gratias.
D. Lancerote − Entrem, senhores doutores.
Semicupio − Qual de Vossas Mercês é aqui o doente?
D. Lancerote − É este que aqui está de cama.
Semicupio − Logo me pareceu pelos sintomas.
D. Tibúrcio − Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Senhor
doutor!
Semicupio − Agora vou a isso; ora diga-me o que lhe dói?
D. Tibúrcio − Tenho na barriga umas dores mui finas.
Semicupio − Logo as engrossaremos; e tem o ventre tremido,
inchado e pululante?
D. Tibúrcio − Alguma coisa.
Semicupio − Vossa Mercê é casada ou solteira?
D. Lancerote — Não, senhor, que meu sobrinho é macho.
Semicupio − Dianteiro ou traseiro?
D. Lancerote − Ui, Senhor doutor! Digo que meu sobrinho é
varão.
Semicupio − De aço ou de ferro?
D. Lancerote − É homem: não me entende?
Semicupio − Ora acabe com isso;
eis aqui como por falta de informações morrem os doentes; pois se eu não
especulara isso com miudeza, entendendo que era macho lhe apucava uns cravos, e
se fosse varão umas limas; e como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe
há de fazer.
D. Lancerote − Eis aqui como eu gosto de ver os médicos
assim especulativos.
Semicupio − Pois o mais é asneira; diga-me mais, ceou
demasiadamente a noite passada?
D. Tibúrcio − Tanto como a futura, porque desde que se me
acabaram as chouriças que trouxe no alforje, me tem meu tio posto a pão e
laranja.
D. Lancerote − Aquilo são delírios, Senhor doutor.
Semicupio − Assim deve ser por
força, ainda que não queira, pois, conforme ao aforismo: Cum barriga dolet,
catera membra dolent.
D. Tibúrcio − Não são delírios, Senhor doutor, que eu estou
em meu juízo perfeito.
Semicupio − Pior, pois quem diz que tem juízo, não o tem.
D. Lancerote − Senhor doutor, o
homem está alucinado, depois que um fantasma, que saiu de uma caixa, o
desancou; e, sobre isto, a grande pena que tem tomado de umas moças que aqui
introduziu em casa, enganando-as, de cuja inocência se me veio queixar à mãe,
que era mulher de bem, ao que parecia.
Semicupio − Ela é muito criada de Vossa Mercê.
D. Tibúrcio − Deixemos isso; o caso é que a minha barriga
não está boa.
Semicupio − Cale-se que ainda há de ter uma boa barrigada.
Deite a língua de fora.
D. Tibúrcio − Ei-la aqui.
Semicupio − Deite mais.
D. Tibúrcio − Não há mais.
Semicupio − Esta bastará; é forte
linguado! Tem muito boa ponta de língua! Vejam Vossas Mercês, Senhores
doutores.
D. Gil − A língua é de prata.
D. Fuas − Úmida está bastante.
Semicupio − Venha o pulso: está intermitente, lânguido,
convulsivo.
D. Lancerote − Ah! senhor, que grande médico!
D. Nize e D. Fuas − Como está tão melancólico! (para D. Clóris).
D. Clóris − Estará cuidando na receita.
Semicupio − Ora, senhores,
capitulemos a queixa. Este fidalgo (se é que o é, que isto não pertence à
medicina) teve uma colérica procedida de paixões internas, porque o espírito,
agitado da representação fantasmal e da investida feminil, retraindo-se o
sangue aos vasos linfáticos, deixando exauridas as matrizes sanguinárias, fez
uma revolução no intestino reto; e, como a matéria crassa e viscosa, que havia
nutrir o suco pancreático, pela sua turgência se achasse destituída de vigor,
por falta de apetite famélico, degenerou em líquidos; estes, pela sua virtude
acre e modaz, vilificando e pungindo as túnicas e membranas do ventrículo,
exaltaram os sais fixos e voláteis por virtude do ácido alcalino, de sorte que
fez com que o senhor andasse com as calças na mão toda esta noite: in calsis andatur, qui ventre evacuar,
disse Galeno.
D. Lancerote − Eu não lhe entendi palavra.
D. Tibúrcio − Eu morro sem saber de quê.
Semicupio − Conhecida a queixa, votem o remédio, que eu,
como mais antigo, votarei em último lugar.
D. Gil − Eu sou de parecer que o sangrem.
D. Fuas − E eu que o purguem.
Semicupio − Senhores meus, a
grande queixa, grande remédio; o mais eficaz é que tome umas bichas nas meninas
dos olhos, para que o humor faça retrocesso de baixo para cima.
D. Tibúrcio − Como é isso de bichas nas meninas dos olhos?
Semicupio − É um remédio tópico; não se assuste, que não é
nada.
D. Tibúrcio − Vossa mercê quer-me cegar?
D. Lancerote − Calai-vos, sobrinho, que ele médico é, e bem
o entende.
D. Tibúrcio − Por vida de D.
Tibúrcio, que primeiro há de levar o diabo o médico e a receita, do que eu tal
consinta.
Semicúpio − Deite-se, deite-se: o homem está maníaco e furioso.
*****
Seleção e Notas de
Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte:
Antologia nacional,
Livraria Francisco Alves.
Antônio José da Silva, O Judeu, (Rio
de Janeiro, 1705, Lisboa, 1739) advogou em Lisboa,
e, havendo escapado a uma primeira acusação de judaizante, tinha-se
popularizado como autor de peças dramáticas, então chamadas óperas, para o
teatro do Bairro-Alto, quando foi denunciado por uma escrava e, condenado, sofreu
pena capital no Campo da Lã. Espírito’ galhofeiro e que essencialmente
ambicionava comprazer ao público, nem sempre acatou a decência; mas não vale
negar-lhe, como bem pondera o Senhor Pereira da Silva, o pico da originalidade
e do sal cômico.
Entre as suas óperas distinguem-se:
Vida do Grande Dom Quixote de La
Mancha ; O Labirinto de Creta; Esopaida; Guerras do Alecrim e
da Manjerona; e o Anfitrião, no qual se tem querido ver alusões ferinas a D.
João V.
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