segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Certas coisas

 Affonso Romano de Sant'Anna

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Muitos poemas perdi
pensando: “depois escrevo”,
“agora estou almoçando”
ou “consertando a porta”.
Assim, adiei-perdi
o melhor de mim.

Certas coisas
não se podem deixar para depois,
e nisto incluo: frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
O desejo sabe o que quer,
detesta burocracia.

Feito depois, o amor
murcha lembrança
do que, não sendo, seria.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar
− a poesia.
 


 Foto Tribuna de Minas

Affonso Romano de Sant'Anna nasceu em 1937, em Juiz do Fora (MG), e é considerado um dos mais importantes poetas do país. Autor de mais de 40 livros, entre os quais, Que país é este? (1980) e Textamentos (1999). Os poemas publicados nesta edição do Cândido são inéditos e fazem parte de um livro, ainda sem título, que será publicado em 2015. Vive no Rio de Janeiro (RJ).    

A voz da poesia 

Affonso Romano de Sant ́Anna 

A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à vertigem. 

Ou: a poesia é quando se está à beira de si mesmo. 

Cair em si, sem se perder, ou achar-se do outro lado de si mesmo. Isso exige perícia. Pois há que ouvir sons, ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior. 

Certa vez fiquei duas horas sobre as pedras do Arpoador, à toa, apenas ouvindo o mar. O marulhar do mar. O marulhar da alma. É preciso uma certa ousadia para ouvir o nada. O nada é onde tudo começa. É de onde surge a voz da poesia. 

Estranha relação entre o eu e o mundo. O pessoal e o social. Há de haver uma orquestração. 

Não é de muita valia ficar chorando pelos cantos. O choro pessoal ainda não  é  poesia. Tem que haver algo mais: converter-se em coro. 

Por isto a voz do poeta é de utilidade pública. Quando não sabemos como dizer certas coisas, pedimos a voz do poeta emprestada e entoamos uma verdade simbólica. 

Rainer Maria Rilke, poeta alemão, pediu emprestado um castelo para, isolado,  ouvir melhor o que os querubins diziam. 

Vitor Hugo foi para as ruas e barricadas ouvir a voz do seu tempo. 

Rimbaud, de repente, calou-se para sempre.   

Ficou mudo.  

Um zumbi perdido nos desertos africanos. Sem voz. 

Quando Orfeu soava seus versos, as bestas mais ferozes se acalmavam e até as  pedras o entendiam. 

Como cada pássaro tem um canto especial, o poeta tem que descobrir qual é a  sua voz interior. Não se cantar com a voz do outro. 

Claro que alguns, na literatura e na vida, começam imitando o canto alheio.  É um aprendizado. 

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Texto escrito a propósito do projeto BR6 Convida, realizado no CCBB-Rio, e publicado anteriormente no O Globo em 12 de Agosto de 2012.

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