sábado, 12 de agosto de 2023

Xeque-mate no Diabo

Conheci na célebre cidade de Damasco, já lá se vão muitos anos, um velho enxadrista cristão, chamado Ibrahim Calemah. 

Era um homem baixo, meio calvo, de barbas brancas; tinha o nariz deformado por uma cicatriz; os seus olhos negros, extremamente vivos, pareciam dois pequeninos besouros − desses estranhos besouros do deserto que os árabes de minha tribo denominavam astemalak. 

Contaram-me os damascenos que o xeque Ibrahim, por causa da sua incorrigível mania e paixão pelo jogo de xadrez, se envolvera em perigosas aventuras. 

De uma feita viu-se em séria atrapalhação com o próprio Diabo! 

Com o Diabo? 

Devia ser surpreendente essa aventura do cristão com o Maligno, que os árabes denominam Cheitã. Procurei conhecê-la. E, um dia, finalmente, naquele café, que fica junto à porta de Santo Tomás, interroguei sobre o caso o famoso enxadrista. 

Como conseguira ele enfrentar o próprio Gênio do Mal? 

O velho Ibrahim, com sua enorme paciência, contou-me o seguinte: 

− Nesse tempo eu não passava de um presumido orgulhoso enxadrista. A vaidade encastelara-se em meu coração. Tinha-me na conta de invencível. Conhecia milhares de golpes, lances secretos, contra-ataques e xeques que seriam suficientes para desnortear o adversário mais perigoso. 

Uma noite, depois de ter derrotado, num violente torneio, vários campeões, um de meus amigos interpelou-me: 

− Você teria coragem de bater-se contra o Emir de Hedjaz, o campeão da Arábia? 

− Ora, ora, respondi em tom de menoscabo. − Eu seria capaz de jogar xadrez até com o Diabo! 

Aquela minha descabida bravata, dita com seriedade e convicção, surpreendeu os meus companheiros. Um pesado e impressionante silêncio seguiu-se às minhas palavras. Um maronita, bom católico, fitou-me horrorizado e respondeu-me circunspecto: 

− Não diga isso, Ibrahim! É uma afronta à nossa crença! 

− Qual afronta, nem meia afronta! − repliquei desabusado. Diante do tabuleiro não temo adversário algum! 

Nessa noite, entretanto, ao regressar para casa sentia que praticara uma grave imprudência. Uma inquietação indefinível pesava em meu espírito já um pouco conturbado. Procurei dominar a sensação de temor que pouco a pouco me invadia. 

A noite estava ainda escura; poucas estrelas se avistavam no céu de Damasco. O vento, com rajadas incertas, varria as ruas desertas, uivando como um chacal faminto. 

Passei por Bab-el-Feredj, caminhei pela tortuosa Rua Menac e cheguei, finalmente, a nossa casa em Elebeh. Minhas irmãs, dias antes, haviam seguido para Jerusalém e eu me achava, por isso, inteiramente só. 

Abri cautelosamente a porta e entrei. Acendi logo a vela e encaminhei-me para o meu quarto. 

O tabuleiro de xadrez, com as suas trinta e duas peças, achava-se justamente como eu o havia deixado. 

E como me sentisse vagamente nervoso e sem sono, resolvi analisar uma das partidas que havia jogado de tarde, durante o torneio. Preparei, pois, o tabuleiro e arrumei todas as peças em seus lugares. 

Nesse momento ouvi um estranho ruído. Voltei-me rápido e vi, de pé, diante de mim, um cavalheiro alto, de ombros largos, todo vestido de preto. O seu rosto era cor de bronze e seus olhos desprendiam um estranho lume. 

− Quem é o senhor? − bradei, tomado de indizível espanto. − Que deseja a esta hora em minha casa? 

− Calma, meu amigo − respondeu o desconhecido, fitando-me nos olhos, penetrantemente. − Calma, ó xeque Ibrahim! Em poucos palavras explicarei o motivo desta minha inesperada visita. Ouvi hoje o teu insensato desafio. A tua petulância irritou-me. E aqui estou para medir, em torneio decisivo,  a tua tão celebrada força de enxadrista. 

Só então percebi, trêmulo de pavor, que tinha diante de mim o Diabo − aquele inimigo terrível que os beduínos chamam “Cheitã”, o Infernal. 

Procurei dominar-me e balbuciei: 

− Não me bato com o Demo! 

− Mudarás de ideia, meu caro − ameaçou Satã, acompanhando as suas palavras de uma risadinha estridente, metálica, desagradável. 

− O desafio foi teu. E agora estás obrigado a aceitar-me como adversário. 

E, depois de uma ligeira pausa, prosseguiu: 

− Vamos jogar uma única partida. Se venceres receberás, como prêmio, esta bolsa com cem libras; se perderes terás que abandonar, para sempre, o jogo de xadrez! 

Já mais calmo, enchi-me de coragem e respondi: 

− Aceito a sua proposta. Vamos ao jogo, Sr. Diabo! 

− Uma condição ainda, advertiu, num tom muito grave, o temível Chaitã. − Durante a nossa partida não farás gesto algum, nem dirás palavra que seja incompatível com a minha presença. Prometes?

 − Assim o prometo, confirmei com segurança. 

Sentamo-nos em silêncio diante do tabuleiro. O Diabo escolheu as pretas e eu joguei com as brancas. 

Iniciei, desde logo, um ataque violento com os peões: avancei com os bispos e coloquei, em boa posição, os meus cavalos. De repente, porém, por um descuido, perdi uma peça e o Diabo passou para a ofensiva. Ao fim de poucos lances a minha posição tornou-se delicadíssima; o meu rei estava sob a ameaça de um xeque-mate, isto é, a partida para mim estava em grave perigo. 

Procurei defender-me com as torres; os meus planos, porém, foram inutilizados por um xeque duplo que atirou por terra a minha dama e um de meus bispos. Percebi, nesse momento, que estava perdido. O Diabo, com uma torre e dois cavalos, cercava o meu rei. 

Em dado momento, cascalhou uma grande risada e clamou: 

− E agora, campeão? Ainda julgas que podes ganhar? Para um jogador de fama seria preferível abandonar! Em poucos lances darei o xeque-mate no teu rei! 

− Vamos! − bradei exaltado.  − Não abandono! Quero ver esse xeque-mate! 

No momento, porém, em que o Diabo tomou de sua torre preta para completar o lance final que lhe daria a vitória da partida, soltou um rugido surdo, tremendo, e desapareceu. 

O abalo foi tão grande que rolei meio estonteado pelo chão. 

Quando despertei do susto, as peças do xadrez − reis, torres e peões − estavam espalhadas em redor de mim. Ao pé da mesa, pesada de ouro, estava a bolsa escura. Era o prêmio da vitória. 

Havia naquela singular aventura um mistério para mim indecifrável. 

Por que teria o Diabo abandonado, de repente, a partida já inteiramente ganha por ele? 

Com calma reconstituí, no tabuleiro, lance por lance, a partida jogada. E, ao chegar ao golpe final, o caso ficou inteiramente esclarecido: 

No último lance, em que deveria dar xeque-mate no meu rei, as oito peças restantes, sobre o tabuleiro, formavam, nitidamente, a figura perfeita de uma cruz! 

E, impossibilitado de formar aquele símbolo sagrado, o meu infernal adversário viu-se obrigado a fugir! 

Só mesmo a cruz seria capaz de vencer e esmagar para sempre o Diabo! 

E, com essas palavras, o velho campeão dava por finda a narrativa de sua estranha aventura enxadrística.

Posição final do chamado “Problema do Xeque-mate no Diabo”, que inspirou o conto escrito por Malba Tahan. 

Do livro “Lendas do Deserto”, de Malba Tahan*

* Júlio César de Mello e Souza (1895-1974) foi um professor, pedagogo, conferencista, matemático e escritor brasileiro. Ele é famoso no Brasil e no exterior por seus livros de recreação matemática e fábulas/lendas passadas no Oriente, muitas delas publicadas sob o pseudônimo Malba Tahan. O xadrez serviu-lhe de inspiração para escrever o conto “Xeque-mate no Diabo” e outros mais.

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