sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Uma bela crônica do Carpinejar

 Por que amamos tanto a nossa cidade? 

Carpinejar

Se você tem mais de 40 anos, não é possível educar o seu filho como na sua infância. O mundo é outro. 

Não há nem como explicar para ele que você passava o tempo inteiro fora de casa. Voltava unicamente quando escurecia, quando os pais o chamavam para jantar. Os pais gritavam o seu nome da varanda ou da sacada. Você ouvia de onde estivesse. 

Tudo acontecia na rua. No seu quarto, só cabia o beliche. Não tinha espaço para mais nada. Repartia o dormitório com os irmãos. Assim como revezava a bicicleta com eles, era uma para todos. 

Nunca chegávamos aos pais para lamentar que não tínhamos com o que brincar. Não existia tédio. Recebíamos brinquedos exclusivamente no aniversário e no Natal. 

Inventávamos os nossos passatempos com o que havia pela frente. 

Lutávamos de guerra com cabo de vassoura de lança e tampa de lixo de escudo. 

Jogávamos futebol na calçada, com goleiras improvisadas nas portas das garagens. 

Disputávamos taco usando gravetos ou lata de azeite como casinha. 

Montávamos um campeonato de bolinhas de gude no areal mais próximo, saindo dali deserdados ou ricos, sem nenhuma bolita ou com uma nova coleção, conquistada nos arremessos da forquilha entre as pontas do polegar e do indicador. 

Riscávamos as lajes para amarelinha. 

Pulávamos corda coletivamente, esperando a volta completar para nos alinharmos na fila do salto. 

Desafiávamos a altura dos fios de luz com pandorgas. 

Reuníamos em curioso bolinho ao redor de colega que trazia uma novidade na época, que podia ser ioiô, pião, bilboquê, bambolê, elástico. 

Os pais não compravam pacotes de figurinhas. Completávamos os álbuns com bafo no recreio. 

Não havia condomínios fechados, limites de acesso a um local. 

Galgávamos os muros dos vizinhos. Vivíamos em telhados, impulsionados pela escadinha das mãos dos amigos. 

Subíamos em árvores para buscar nossas frutas. Jamais pegávamos compradas na cozinha. 

Andávamos de pés descalços no verão. Tomávamos banhos de mangueira. Bebíamos água da torneira. Ficávamos horas debaixo da chuva escorregando na lama. A gripe fugia de nós. 

Atravessávamos a Capital a pé em bando, desprovidos de troco para o ônibus. Tínhamos que nos virar no contraturno da escola. Os pais já estavam muito ocupados com o trabalho para perder a paciência conosco. 

Sem celular, eles jamais sabiam onde estávamos e não morriam de preocupação. Confiavam em nosso instinto. 

Não perguntávamos aos pais o que deveríamos fazer. Não existia ansiedade. 

Por isso, diferentemente dos jovens de hoje, que são capazes de morar em qualquer lugar, com um poder de maleabilidade e adaptação, sofremos uma dificuldade intraduzível de sair de nossa cidade. 

Somos apegados ao nosso primeiro bairro, presos à cartografia dos passos fundadores e das descobertas da formação. 

Por que amamos tanto a nossa cidade? Foi ela que nos criou. 

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(Do jornal Zero Hora, 25 de agosto de 2023)

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