Do amor
Affonso Tresguerres
Dizia um filósofo que estar
enamorado é uma espécie de patetice transitória – definição baseada naquilo que
o enamorado melhor faz, que é agir como um pateta. E certamente só um tolo
seria capaz de empobrecer sua vida mental, de reduzir seu campo perceptivo e
motivacional até o extremo de concentra-se em um só objeto, de tal maneira
obcecado que todo o resto passa a segundo plano ou simplesmente desaparece. O
enamorado, assim como os lunáticos ou os tontos, raciocina conforme uma lógica
especial, em que os princípios da lógica propriamente dita quase sempre estão
ausentes. Assim, o enamorado crê no que é incrível, espera o inalcançável,
considera provável o impossível, e impossível o que é evidente. Por fim, quando
um dia as coisas voltam a seu lugar, quando cessam os sintomas e desaparece a
febre, custa-lhe entender o que aconteceu, e às vezes chega à triste conclusão
de que ele mesmo tornou-se uma prova tangível do efeito Bamum, segundo o qual
nasce um novo tolo a cada minuto, e uma prova também do que poderíamos
considerar uma variante do mesmo efeito, que estabelece que um tolo, por tolo
que seja, sempre vai encontrar alguém mais tolo do que ele e que, além disso, o
admira e, melhor ainda, até se apaixona por ele. Assim vivemos.
Sonetonº116
William Shakespeare
Que eu não veja impedimento
Na sincera união de duas almas.
Não é amor aquele que,
Encontrando modificações, se
modifica
Ou diminui se o atinge o desamor
do outro.
Oh, não! O amor é para sempre
E enfrenta ileso as piores
tempestades.
É estrela guia para cada barco
errante,
De brilho intenso, mas valor
secreto.
O amor não depende do tempo
Não escolhe nem dia nem hora
Mas resistirá ao limiar da Morte.
E, se se provar que estou errado,
Nunca fiz versos,
Nem jamais alguém terá amado.
Os versos que te fiz
Florbela Espanca
Deixa dizer-te os lindos versos
raros
Que a minha boca tem pra te
dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra ter
oferecer.
Têm a dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos
raros
Que foram feitos pra te
endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo
ainda...
Que a boca da mulher é sempre
linda
Se dentro guarda um verso que
diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, amor, que eu te
não dei
Guardo os versos mais lindos que
te fiz!
Milionários
Juana de Ibarbourou
Segura minha mão. Vamos para a
chuva
descalços e com roupa leve, sem
guarda-chuva,
com o cabelo ao vento e o corpo
na carícia
oblíqua, refrescante e miúda, da
água.
Que riam os vizinhos! Posto que
somos jovens
e nos amamos e adoramos a chuva,
vamos ser felizes com o prazer
singelo
de um casal de pardais que
arrulha na rua.
Adiante estão os campos e o
caminho de acácias
e a chácara suntuosa daquele
pobre senhor
milionário e obeso, que com todos
os seus ouros
não poderia comprar nenhum grama
do tesouro
inefável e supremo que Deus nos
deu:
somos flexíveis, jovens, estamos
cheios de amor.
Contra-senso
Marta de Mesquita da
Câmara
Oh, meu amor, escuta, estou aqui.
Pois o teu coração bem me
conhece:
eu sou aquela voz que, em tanta
prece,
endoideceu, chorou, gemeu por ti!
Sou eu, sou eu que ainda não
morri
− nem a morte me quer, ao que
parece −
e vinha renovar, se inda pudesse,
as horas dolorosas que vivi.
Oh, que insensato e louco é quem
se ilude!
Quis fugir, esquecer-te, mas não
pude...
Vê lá do que teus olhos são
capazes!
Deitando a vista pelo mundo além,
desisto de encontrar na vida um
bem
que valha todo o mal que tu me
fazes!
Quero
Carlos Drummond de
Andrade
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a
exaustão
que me amas que amas que me amas.
Do contrário evapora-se a armação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmente,
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por tua palavra
nem sei de outra maneira a não
ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se
amado:
amor na raiz da palavra
e não sua emissão,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me disseres
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de mear,
que nunca me amaste antes.
Se não me disseres urgente
repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de
desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de
não-amor.
A prisioneira
Marcel Proust
São, sobretudo, criaturas assim
que nos inspiram amor, para nossa aflição. Pois cada ansiedade nova que por
causa delas sofremos desfalca-lhes aos nossos olhos um pouco da personalidade.
Estávamos resignados ao sofrimento, crendo amar fora de nós, e percebemos que
nosso amor é função de nossa tristeza, que nosso amor é talvez a nossa
tristeza, e que o seu objeto só em diminuta porção é a moça da cabeleira negra.
Mas, afinal, são sobretudo criaturas assim que nos inspiram amor.
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