Carpinejar*
● Espremeu a pasta de dente até ela confessar quem usou a sua escova.
● Cortou o outro lado do tubo para o derradeiro esguicho da pasta na escova.
● Abriu conserva de pepino ou de palmito sabendo que estava vencida e disse: “são apenas alguns dias, ninguém vai morrer”.
● Contou vantagem de ter comprado um carro seminovo, eufemismo para um veículo velho.
● Pôs um adesivo no carro e se arrependeu na hora de tirar.
● Esqueceu o forno aceso após servir o assado.
● Avisou para uma visita não reparar na bagunça quando tudo estava fora do lugar.
● Deixou uma última volta do papel higiênico somente para não trocar o rolo.
● Comeu alimento que caiu no chão, aplicando a regra dos cincos segundos.
● Misturou água com o restinho do xampu, chacoalhou e fingiu que estava novo.
● Uniu restos de sabonete boiando no box do banheiro para formar um segundo sabonete Frankenstein.
● Tentou remendar a tira das havaianas com isqueiro.
● Exagerou no desodorante pela culpa de ter cabulado o banho.
● Requentou pedaço de pizza como café da manhã.
● Postou uma selfie esquecendo o que havia no fundo da imagem.
● Pregou um quadro para esconder as infiltrações da parede. Ou encheu a geladeira de imãs para cobrir os arranhões.
● Molhou com a língua a ponta dos dedos para virar as páginas das revistas.
● Passou o dedo no chantilly de uma torta de aniversário.
● Lambeu a tampa do iogurte.
● Reutilizou o sache do chá.
● Colocou manta no sofá para disfarçar manchas e rasgos.
● Carregou docinhos de uma festa enrolados em guardanapo, na bolsa ou no bolso do casaco.
● Pulou de roupa na piscina da casa de um amigo.
● Levou cerveja marca-diabo para um churrasco e só bebeu lá uma de melhor qualidade.
● Inverteu as pilhas de lugar no controle remoto para ver se ele voltaria a funcionar.
● Confundiu caipirosca com salada de frutas numa festa e ficou garfando os morangos.
● Pediu para embrulhar sobras simbólicas da refeição em um restaurante avisando que era para o seu cachorro.
● Repassou presentes que recebeu e não gostou no amigo-secreto da firma.
● Coçou o ouvido com tampa da caneta Bic.
● Entrou em bares ou lanchonetes somente para ir ao banheiro e não consumiu nada.
● Saiu de casa com meia e chinelo, acreditando que logo voltaria. Encontrou seu chefe no caminho.
● Mentiu que não foi você que devorou a ultima fatia do pudim na geladeira (apesar da consciência de que não era sua).
Você pode achar que isso é o cúmulo da pobreza, mas é o apogeu da espontaneidade.
Se não se identificou com nenhum item da lista, ainda não aproveitou a simplicidade desconcertante da existência, feita de singelos e perdoáveis pecados.
São transgressões aceitáveis da melhor vivência, muito além da sobrevivência.
Sofre de medo de desagradar. Tampouco descobriu que viver é um permanente vexame.
(Do jornal Zero Hora, 29 de junho de 2023)
*Fabrício
Carpi Nejar (Caxias do Sul, 23 de outubro de 1972), ou Fabrício
Carpinejar, ou ainda só Carpinejar, como
passou a assinar em Zero Hora, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro.