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Leonardo Pataca, por
Belmonte.
O que se passou ontem à tarde com
o cronista* parece coisa de difícil explicação. Ia ele pela Rua do Ouvidor
quando reparou que a rua não era a mesma. À esquina de Quitanda havia um
ajuntamento diverso das habituais reuniões de curiosos em torno de um camelô.
Sujeitos sentados em cadeiras de couro, na calçada, conversavam, com alarido
uns com outros, enquanto um deles, extremamente gordo, se deixava ficar de
pernas estendidas, queixo grudado ao bengalão. Suas vestes eram tão estranhas
que requeriam exame. Foi quando, percebendo pasmo do cronista, alguém se
aproximou:
− Pois não conhece? É o Leonardo
Pataca. O nosso meirinho mais velho, e por sinal que maluco por um rabo de
saia...
Nisto, um rumor maior se fez
ouvir, e uma velha traquitana, puxada por um matungo, perdendo uma das rodas,
foi enguiçar no meio da rua. Dela saiu um senhor todo de preto − casaca e
calções de seda, sapatos de entrada baixa com fivela de prata, espadim e chapéu
de pasta. O mesmo informante explicou:
− É o senhor José Manuel, que
seguia cheio de nove-horas para um casamento na Sé, e agora tem de ir no
calcante.
A essa altura nada mais era
estranho, e foi mesmo com uma sensação de bem-estar que o cronista viu
aproximar-se um grupo de pretos de água, o que demonstrava na cidade um certo
interesse prático pela solução do seu imortal problema. Enfim, tinha-se tomado
uma providência: havia homens que iam apanhar água não se sabe aonde, para
vendê-la a quem dela precisasse.
O cronista foi andando e viu já
agora figuras tão integradas na paisagem urbana que era como se conhecesse de
sempre. Na Rua dos Ourives, passou a Maria Regalada*, seguida a pequena
distância pelo capitão Buonaparte; também era fácil de identificar, pelas
chufas dos moleques, a Maria Doida. Já o músico Policarpo, esse, à porta da
barbearia, se esforçava por tirar no oficleide* o verdadeiro lundu “Dizem que
sou borboleta”. Passaram mascates e carregadores de café, e como era ágil o
ritmo desses últimos! Gente sobraçando esteiras e tabuleiros de comida rumava
para o Campo de Santana, onde ia festejar-se o Divino. De repente, como um
rastilho, o sussurro atravessou os grupos, fez cerrar as portas, provocou uma
louca debandada. Alguém dissera:
− Foge, gente, que o Vidigal vem
aí!
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Vidigal,
Rio de Janeiro, 1942, por Belmonte.
O Vidigal apareceu logo depois,
alto e terrível, precedido de uma guarda de granadeiros com chibatas. Haviam
soado as ave-marias, e ele percorria as ruas para recolher quem estivesse
praticando ou pensando algum malfeito. A cidade se esvaziou num instante. Vidigal
era um homem de descer a lenha sem piedade; ele prendia, ele julgava, ele
punia. E seu nome espalhava um terror sagrado. O próprio cronista, homem
pacato...
Quem quiser sentir essas e outras
emoções, basta ir ali no saguão da Biblioteca Nacional e ver a bela exposição
de gravuras, livros e autógrafos com que Eugênio Gomes assinala o centenário da
publicação de Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Através da iconografia habilmente
escolhida, reconstituiu-se o “tempo do rei”, em que se passou a história, e o
tempo do escritor, de que nos falam outras litografias. Romance tão vivo que
nos transporta para um Rio diferente e nele nos sentimos viver. De resto, nem
tudo é visão do passado. Vidigal, por exemplo, ainda existe.
C.D.A.
(Do livro “A
Biblioteca Nacional na crônica da cidade”,
de Iuri Lapa e Lia Jordão)
de Iuri Lapa e Lia Jordão)
*Cronista: o autor da crônica que
se assina: C.D.A. (Carlos Drummond de Andrade) que volta ao século XIX, no
tempo do livro Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de
Almeida. Surgiu como um romance de
folhetim, ou seja, em capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio
Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os folhetins
não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro
volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O
nome de Manuel Antônio de Almeida aparecerá apenas na terceira edição, já
póstuma, em 1863.
*Maria Regalada: uma das
personagens secundárias do romance “Memórias de Um Sargento de Milícias”.
*Chufas: gracejos impertinentes.
*Oficleide: ou oficlide, também
conhecido popularmente como figle é um instrumento
musical de sopro da família dos metais.